sexta-feira, 28 de março de 2014

Rascunhos de um pensamento político

Parte 1: A intuição libertária

Chamo de intuição libertária uma postura que, para mim, é o ponto de partida. Algo como uma "verdade evidente por si mesma", mas que terei de justificar se for para elaborar algum pensamento digno do nome, mesmo que um rascunho. A idéia de liberdade, como apresentada na famosa declaração de independência dos EUA, está associada à idéia de direito, de um direito inalienável. 

"Consideramos estas verdades como auto-evidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade". (Wikipédia)

A óbvia contradição, em um texto que visa à instituição de um Estado, é que todo Estado começa por uma alienação desse direito à liberdade. Então, o primeiro passo, seria determinar o grau dessa alienação, para imaginar um Estado que se institua como a obra de homens livres, conscientemente abrindo mão do mínimo necessário de suas liberdades para a manutenção da ordem. A formulação mais básica é de Mill: "Que o único propósito pelo qual um integrante de uma comunidade civilizada pode ser legitimamente coagido é para prevenir o dano a outros". (On Liberty, 1859)

Essa é a intuição libertária básica. Que cada membro de uma sociedade seja livre para agir segundo seus próprios interesses, para definir quais são seus próprios interesses, e para colher os frutos e as agruras de suas livres escolhas, com a prazerosa garantia da segurança provida pelo Estado, resumida na cláusula de que não impeça outros de fazer o mesmo. Implícito nessa formulação está a idéia de que o Estado é um mal necessário, ou, na melhor das hipóteses, um bem, perfeitamente bem-vindo, mas apenas enquanto realizado na medida certa. Nesses termos, poucas coisas seriam mais importantes para o bom funcionamento de uma sociedade, que a capacidade do povo para controlar o Estado, mantendo a eterna vigilância, que é o preço da liberdade (Thomas Jefferson).

Para mim, a principal crítica a esta intuição não ataca a idéia de liberdade, mas a de indivíduo. Também implícito na intuição libertária está a idéia de que há algum valor intrínseco ao indivíduo, que lhe dê direitos em oposição aos interesses coletivos. Porém, ao considerar que não há, nem nunca houve, algo que possa ser chamado de ser humano desprovido de uma cultura e de uma sociedade, pode-se argumentar que, talvez, a liberdade individual mereça menos crédito do que a intuição libertária lhe compete. Talvez a máxima expressão do ser humano se encontre em sua entrega ao bem comum, e não no ilusório (fetichista?) esforço de valorizar a si mesmo.

Novamente, para apontar alguma saída a esse embate, basta revelar as idéias implícitas. Na intuição libertária, como aqui exposta, e na crítica proposta, esta implícito o antagonismo, a polarização: para ser libertário é preciso valorizar o indivíduo em detrimento da sociedade, e, para que se possa valorizar a sociedade, é necessário diminuir o indivíduo. Depois das manifestações de agosto, fui bombardeado por sugestões de textos de ambas as estirpes. Os amigos de esquerda, com seus discursos de esquerda, sem muitas novidades. Mas os amigos de direita, que antes ficavam calados, ou resumiam-se aos comentários da forma: "que absurdo!", parece que começaram a tentar organizar as idéias, e eleger algum discurso que os representasse de forma mais elaborada. O discurso libertário foi um dos que mais ganhou força, ao menos na minha amostragem pessoal. Mas, mesmo quando muito bem conduzidos, provenientes de fontes eruditas e creditadas, tais discursos tendem à polarização. Tendem a opor-se ao Estado, como se o libertarianismo flertasse com a anarquia. Não chegam ao exagero de defender um libertarianismo brutalista, uma sociedade do egoísmo, mas perdem tempo atacando as instituições, a máquina do Estado, os mecanismos de proteção social. Uma coisa é defender um Estado mínimo e pouco intrusivo, outra é atacá-lo por princípio.

A única forma que eu encontro de justificar a intuição libertária, na forma de um pensamento coeso, é evitando essa polarização, e negando a visão do Estado como um mal necessário. Isso passa por reconhecer toda a premissa da crítica ao individualismo, negando apenas sua conclusão.

De fato, o indivíduo humano isolado, como um constructo teórico, é algo menos que humano. É impossível falar em individualismo em oposição ao Estado, na medida em que não há indivíduo humano sozinho. Nós somos definidos pela cultura, pelos símbolos compartilhados, pela linguagem, pela moral. Ao invés de antepor um ao outro, Estado e indivíduo, é  mais útil partir da premissa de que não há empreendimento mais nobre, e mais essencialmente humano, que a instituição de um Estado justo.

Montesquieu propôs que haveria três formas básicas de governo, cada uma regida por um princípio social: o despotismo, regido pelo princípio do terror; a monarquia, pelo princípio da honra, e a república, pelo princípio da virtude. Cada uma dessas afirmações pode ser elaborada de forma riquíssima, mas a última, talvez por falar mais diretamente às nossas sociedades liberais democráticas, é a que mais me interessa. Há um conceito, aí, tão esquecido. Um princípio básico a legitimar qualquer sociedade democrática, e que, talvez, por tão básico, deixemos de considerar. É que um governo do povo, para o povo, e pelo povo, não pode ser justo se o povo não for justo. Na república, a virtude da sociedade legitima a virtude de seu Estado.

Isso parece que abre uma caixa de Pandora, porque aí seria necessário discutir virtudes, moral, valores, mas nada disso cabe nesses rascunhos. Cabe dizer, com Kant, que ninguém é capaz de moral se não for livre. Que não há possibilidade de uma ação ser virtuosa, se ela não for, primariamente, tomada por um ser humano no pleno exercício de suas faculdades, como um ser livre e racional. A necessidade, imperativa, de ser livre do Estado, não se impõe em antagonismo ao mesmo, mas como a única forma de legitimá-lo.

Por isso não vejo o libertarianismo como um desejo pela ausência do Estado, mas como um desejo por um Estado que trate seus membros como adultos. Na verdade, o desejo por um Estado que tenha em todas as sua engrenagens uma única motivação, a sua única e real função: a de garantir a formação e manutenção de um povo livre, responsável, e desperto, capaz de garantir a formação e manutenção de um Estado justo.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O que aprendi sobre o amor desde o nascimento de minha filha.


Ninguém sabe o que diz quando diz “amo”.


É fabuloso observar como bebês aprendem a falar. Como se dá? Ora, há no bebê um limite do que ele pode, e seu desenvolvimento é a constante expansão desse limite. O que força esse limite? Vontade. Ele tem certa volição, e recruta o máximo daquilo que pode, o tempo todo, para esse fim. Ele fala a partir do momento em que pode, e então o fará sempre. Nunca fala, portanto, porque quer falar. Fala porque tem alguma vontade, e faz tudo o que pode para realizar seu intento, inclusive falar, quando fazê-lo passa a fazer parte daquilo que lhe é possível.

Isso me pareceu tão surpreendente observando Helena: é que a linguagem, quando nasce, não é referencial. Ela não falava porque queria dizer aquilo que falava, mas porque podia falar aquilo, para realizar o que queria. Falar era parte do esforço de realizar sua vontade.

Nesses primórdios da vida intelectual, símbolos, hábitos, aproximações, são tudo o que há. Eventualmente, a fala passava a ser associada, por contingência, por semelhança, por indexação, à coisa referida. Foi fácil ver isso acontecendo, aos poucos, em relação primeiro às coisas mais concretas — brinquedos, cores, pessoas —, e depois às coisas menos concretas — maior, menor, alegre, triste. Essencialmente, nada muda, é tudo associação e hábito. No limite, o sentido de “triste” será sempre “aquilo que se diz quando [tal e tal situação]”. Mas aos poucos vai acontecendo a meta linguagem do entendimento, e ela poderá falar sobre o que é “triste”. Ela ainda não pode, mesmo que já empregue o termo perfeitamente.

E amor? Ela já fala “te amo”, quase que exclusivamente quando solicitada, ou devolvendo a declaração. Mas em nenhuma de suas falas o caráter contingencial, mecânico, não referencial é tão claro quanto nesta. É fácil ter a impressão de que ela compreende o que diz em algum nível superior, quando ela diz qualquer coisa, menos “te amo”. O que é “te amo”? É “aquilo se diz em resposta a ‘te amo’”. É tão óbvio, que ela não sabe o que diz.

E, pensando bem, quando é que nós, adultos, vamos desenvolver a meta linguagem do entendimento e saber dizer o que é “amo”? Veja que não se trata nem da dificuldade de definir o que é “amor”. Ponha “amor” na categoria dos transcendentes. Das ideias confusas que temos de propor quando ultrapassamos nossa capacidade de dar conta das instâncias de sentir que amamos, e temos então de inventar “O Amor”. Que seja, nem precisa dessa polêmica. Esqueça o “amor” e veja se compreende o que é “amo”. Sabemos tão pouco! Sabemos mais, ou menos, que uma criança de dois anos?

Há um sentido em que, talvez, a criança esteja mais próxima de entender o que é “amo” que nós, adultos. Ninguém ama se não amar alguma coisa, mas a experiência de sentir que ama é diferente do amar alguma coisa. Amar é uma experiência não referencial, e talvez haja na incompletude da linguagem infantil, na sua pureza não referencial, um sentido maior de “amo” que aquele que, adultos, somos capazes de inferir.

“Eu amo”, enquanto sentimento, talvez possa ser claro e unívoco. Mas será sempre um símbolo, confuso e equívoco, quando proferido.

Amar parece ser sempre um reconhecimento.


É duro admitir, mas, é logicamente impossível amar Helena antes de ela ser Helena. Que é esse amor que se tem por filhos antes de eles existirem? É fácil afirmar que não há amor na vontade de ter um filho, na decisão de ter um filho, na expectativa de ter um filho, quando ele ainda é só um abstrato. É fácil ver, mas não é indiscutível.

Mas vai ficando confuso saber se é ou não amor o que se sente pelo feto. Onde traçar a linha? Em certos aspectos, é uma discussão parecida à polêmica do aborto. A partir de qual momento há algo que pode ser amado? Pode-se amar o teste positivo? A imagem do ultrassom? O peso na barriga? O chute? O berro ao nascer? O primeiro colo? O primeiro sorriso reflexo? Cada um vai começar a responder sim em diferentes pontos dessa sequência de perguntas. Mas, no fundo, enquanto o filho ainda não interage, não responde de nenhuma maneira particular, não se distingue através de alguma individualidade, como é possível dizer que é a ele, especificamente, que se ama?

Embora nunca haja um momento definido em que um filho passe a ser um indivíduo, sem dúvida que alguma transformação se opera. E é um processo longo, que dura talvez a vida inteira, esse de se tornar um indivíduo. Haveria uma correspondente transformação do amor que se sente? Vai-se experimentando um amor diferente, conforme deixa de ser um amor genérico para ser um amor individual?

Talvez. São perguntas difíceis. Mas o que me interessa, o que acho que se pode dizer que sabemos, na medida em que é o que experimentamos, é que muito do que se chama amor por um filho é algo que se carrega desde antes de haver, propriamente, um filho. Neste sentido, o amor não depende tanto do que se descobre sobre aquele ser em particular, mas do que se reconhece.

Amar verdadeiramente é uma experiência de comunhão.


Falar em amor como um reconhecimento parece ser egoísta. É como se só fosse possível amar a si mesmo — o que se vê, projeta, encontra no outro de semelhante a si.

Mas como poderia ser diferente? E porque isso haveria de diminuir, de qualquer forma, o valor que se atribui à experiência de amar? Quer se propor um amor que una as pessoas, que rompa barreiras, que celebre as diferenças. Isso é o que se aprende na escola, na televisão, nos romances. Mas quero falar do que aprendi com minha filha. Aos dois anos ela não sabe o que é “amar a humanidade”. Aos dois anos ela é uma máquina de egoísmos. Poderia ela me ensinar algo sobre o amor? Só ela pôde.

Aprendi que não sabemos o que é o amor. Mal conseguimos saber o que é amar, o que é dizer “amo”. É difícil, confuso, intermediado por associações e hábitos.

Aprendi que falamos porque podemos. Somos afetados pelas coisas, reagimos a elas, somos de alguma forma direcionados por essa afecções, e falamos como parte desse processo de agir em direção à vontade. Só temos alguma compreensão das coisas na medida em que podemos falar sobre o que falamos delas. O animal racional vai assim desenvolvendo a razão, criando discursos, contando histórias, e tornando-se um indivíduo. Quanto mais indivíduo, mais maduro, mais intermediado por signos, por linguagem, por associações e hábitos.

É uma faculdade incrível, valiosa, útil — a razão. Nasce dos encontros, dos contatos com as coisas do mundo, e vai estabelecendo uma compreensão dessas relações, que dá sentido ao fluxo das experiências. Mas só a partir dessa razão construída é que se pode acusar de egoísmo que se ame o que há de comum. É um fetichismo do ego, que dá tal valor ao indivíduo que se sente envergonhado de amá-lo. Interessante. É tão fundamental que se invente um “Eu”, em oposição ao mundo, que reconhecê-lo no mundo parece ruim.

Uma criança sabe o que é bom. Justamente porque ainda não sabe o que é “O Amor”, nem “O Bem”, nem “O Mal”, é que ela sabe tão bem o que é “amo”, “bom”, e “mau”. Eu tenho uma intensa experiência do amor de minha filha em diversos momentos. Aqueles em que ela diz “te amo”, normalmente não estão entre eles. Talvez por isso seja tão mais difícil desenvolver a meta linguagem do entendimento para o amor que para outros sentimentos. É mais fácil aprender a discursar sobre o que é “triste” ou “alegre” que sobre o que é “amo”. Porque aos poucos vai-se associando o ato de discurso “triste” com os maus encontros, e o ato de discurso “alegre” com os bons encontros. Já o ato de discurso “amo”, por algum motivo, vai ter que ser submetido ao escrutínio das virtudes, do mérito, para saber se é puro, altruísta, desinteressado o suficiente para ser digno de ser chamado “Amor”. Uma criança sabe que só o que advém do desinteresse é a falta de afeto. Amar é reconhecer, ressoar, compor.

O importante não é como se deve amar, mas como se pode amar. Não se haveria de ensinar para as crianças que deve-se amar isso ou aquilo, dessa forma ou de outra. Mas que se pode amar. Que o segredo para uma boa vida, para ser uma boa pessoa, para não ser egoísta, nem mesquinha, nem preconceituosa, é a capacidade para o afeto (a afetividade). Quando mais capacidade para o amor, mais abertura para o mundo, mais diferentes formas de se reconhecer.

Amar verdadeiramente é a extraordinária experiência do comum.





terça-feira, 14 de maio de 2013

Três tigres tristes

Descobri ontem na tirinha do Calvin no Estadão que Augusto de Campos havia vertido a poesia de Blake sobre o animal preferido de qualquer pessoa com olhos e algum senso de aventura. Desde que li a versão de Augusto de Campos, não consegui tirar da cabeça a vontade de fazer uma também. A minha ficou menos reinventada, amadora é claro, quadradinha e conformada com a original, mas também tem meu humilde twist. Segue minha pobre tentativa, seguida da original e da versão do mestre.

Tigre, tigre, incandescente,
Brilha a floresta dormente.
Que espécie imortal de agente
Talhou tão terrível simetria?

Quão extremo e distante o seio
Donde o fogo de teus olhos veio?
Que asas proveram-lhe ar?
Que mão pôs tal chama a queimar?

E quem combina força e arte
Para torcer de teu peito a parte
Que ruge, que soa, que bate?
Que mão, que pé não se abate?

Que martelo? Que corrente?
Que fornalha fez tua mente?
Que bigorna? Qual ardor
Suporta este terror?

Quando cada estrela chorar sua lança
Privando os céus de esperança
Estará Ele a sorrir ao ver?
Pôde quem fez o cordeiro te fazer?

Tigre, tigre, incandescente,
Brilha a floresta dormente.
Que espécie imortal de agente
Talhou tão terrível simetria?



William Blake:

Tiger, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies

Burnt the fire of thine eyes?

On what wings dare he aspire?

What the hand dare seize the fire?


And what shoulder and what art

Could twist the sinews of thy heart?

And when thy heart began to beat,

What dread hand and what dread feet?


What the hammer? what the chain?

In what furnace was thy brain?

What the anvil? What dread grasp

Dare its deadly terrors clasp?


When the stars threw down their spears,

And water’d heaven with their tears,

Did He smile His work to see?

Did He who made the lamb make thee?


Tiger, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?



Augusto de Campos:

Tigre, Tigre! Brilho brasa
que a furna noturna abrasa
que olho ou mão araria
tua feroz simetria?

Em que céu se foi forjar

o fogo do teu olhar?

Em que asas veio a chama?

Que mão colheu esta flama?


Que força fez retorcer

em nervos todo teu ser?

E o som do teu coração

de aço, que cor, que ação?


Teu cérebro, quem o malha?

Que martelo, que fornalha o moldou?

Que mão, que garra seu terror mortal amarra?


Quando as lanças das estrelas cortaram os céus,

ao vê-las, quem as fez sorriu talvez?

Quem fez o cordeiro te fez?


Tigre, Tigre! Brilho brasa
que a furna noturna abrasa,
que olho ou mão araria
tua feroz simetria?




sexta-feira, 22 de março de 2013

Notas de Aula: Ciência e subjetividade - a evolução do pensamento científico


1.    Status Epistemológico

A noção de status Epistemológico é em si uma noção subjetiva. Trata-se da experiência de certa forma de crença que se chama científica. O que chamo de "forma de crença" é apenas uma maneira de me referir à experiência subjetiva de acreditar em algo. Por exemplo, alguém pode acreditar em um fato científico, como a lei da gravitação universal e ao mesmo tempo acreditar em Deus, reconhecendo que são duas formas diferentes de se acreditar, que constituem diferentes maneiras de propor a realidade de um dado. Da mesma forma, alguém pode emitir opiniões e acreditar nelas, por exemplo, ao afirmar: "é fato que o mar é bonito", mas saberá reconhecer que acredita nisso de forma diferente da qual acredita em Deus, ou na lei da gravitação universal. Aqui não se trata de definir qual crença é mais forte, mais valiosa, ou mais justificada, apenas notar que são formas diferentes de crença. O dado que se diz científico goza, assim, de um status particular, característico. Os dados em que acreditamos por serem ditos científicos passam a constituir uma forma específica de conhecimento, que podemos diferenciar de outras coisas que acreditamos conhecer.

2. A disputa por status

Enquanto a "forma de crença" é algo estritamente subjetivo, o status epistemológico de um dado científico pode ser disputado em termos objetivos. Disciplinas que clamam para si um estatuto de ciência querem afirmar que os dados que geram podem gozar deste status. Cientistas gostariam de poder dizer que a decisão sobre quais tipos de dados gozam deste status e quais não depende apenas da própria empreitada científica, da aplicação rigorosa de um método. Mas efetivamente isso não é possível. Essa é uma discussão extra científica que envolve desde debates sobre quão restritivo é o método, até debates políticos. Por exemplo, a psicologia pode submeter-se ao método e tratar apenas dos fenômenos observáveis objetivos, ou pode propor flexibilizações do método que possibilitem gerar dados sobre fenômenos subjetivos, e ainda assim pleitear este status epistemológico. Ou, o CFM pode reconhecer a homeopatia como especialidade médica, efetivamente concedendo-lha este status por decreto. É claro, status epistemológico continua sendo essencialmente uma experiência subjetiva, de modo que alguns serão convencidos por decretos ou por acomodações metodológicas, enquanto outros não, dando origem a acalorados debates.

3. O plano da aula

O objetivo da aula será ilustrar esta questão, e instrumentalizar o aluno para tais debates, através de um rápido e, infelizmente, superficial sobrevôo pela história da ciência, para apresentar um recorte, uma possível narrativa dentre as várias que se poderia construir sobre o tema, de como a ciência que conhecemos hoje aconteceu de ser como ela é.

4. Primeiro momento: a origem grega

É uma tradicional convenção da cultura ocidental colocar o nascimento da ciência na Grécia antiga, mais especificamente entre os filósofos conhecidos como físicos jônicos. Ali surgiu a primeira física, entendida como um discurso a respeito da constituição básica, essencial, da natureza. Tales, o primeiro filósofo e primeiro físico de que temos conhecimento, afirmava que a água era o elemento básico constituinte da vida. Alguns argumentos de Tales: (1) as margens do Nilo tornam-se férteis após serem inundadas; (2) as coisas naturais têm tanto mais vida, são tão mais animadas, quanto mais úmidas (compare uma pedra, uma árvore e um cachorro, por exemplo), e (3) tudo o que é vivo seca quando morre. Mesmo que a conclusão a que Tales chegou a partir desses argumentos seja falsa, este é um pensamento que se utiliza da razão para explicar a natureza a partir da natureza, evitando explicações sobrenaturais. No pensamento mágico, mitológico, que imperava até então, a fertilidade das margens do Nilo seria explicada por alguma divindade, um espírito, que vivesse no rio, e que daria a graça da fertilidade conforme tivesse ou não sido agradado pelos homens. Tales inaugura o pensamento natural, imanente, racional, em oposição ao pensamento mágico.

Polaridade: pensamento racional X pensamento mágico (mito).

5. A ameaça da sofística

O resultado dos esforços dos primeiros físicos, no entanto, não foi uma unificação do conhecimento racional sobre a natureza, ao contrário, cada pensador defendia idéias diferentes. Se Tales via a água como o elemento básico da natureza, para Anaximandro este era o éter, para Anaxímenes era o ar, e para Heráclito era o fogo. Para os sofistas, as discordâncias dos sábios eram mais argumentos a favor da idéia que eles defendiam: não existe verdade além daquela que se convenciona aceitar. Os sofistas cobravam por aparições públicas em que discursavam e por aulas em que ensinavam a arte da retórica e da argumentação, habilidades muito valiosas para o exercício político. Por isso, eram muito influentes. A filosofia socrática/platônica, o primeiro grande sistema filosófico que conhecemos, é em grande parte uma reação à ameaça dos sofistas, à ameaça do relativismo. A filosofia virá direcionar o exercício do intelecto humano para o esforço por conceber a verdade, a essência das coisas. Usando a famosa figura de linguagem de Platão, para "destrinchar a natureza", separar o verdadeiro do falso, o real do ilusório, o essencial do contingente, não por uma convenção humana, mas de forma a representar o que de fato acontece na natureza.

Polaridade: verdade (alethea - filosofia) X opinião (doxa - sofística)

6. A identidade Helênica

Eu chamo de identidade helênica a uma característica do pensamento grego que perdurará durante cerca de dois mil anos. Trata-se da estreita relação entre conceitos expressa na seguinte identidade: Verdade = Bom = Justo = Belo. É claro que a cultura grega não concebia estes conceitos como iguais, conhecendo bem as características distintas de cada um, mas eles eram aproximadamente coextensivos, ou seja, referiam-se a um mesmo conjunto de coisas do mundo. Os épicos homéricos eram estética e ritmicamente perfeitos, o que os tornava também verdadeiros. O homem que agisse de forma boa e justa teria encontrado a forma certa, verdadeira, e a mais bela, de agir. Há um princípio teleológico por trás dessa forma de ver, que identifica com a verdade e com a justiça aquilo que é a solução ideal, perfeita, correta, de cada problema. Existe, dessa forma, um discurso qualitativo, subjetivo, a que se pode atribuir status epistemológico.

Temos até aqui, portanto, que ciência é um discurso racional orientado para a verdade. Este pensamento representa uma forma de se ver o mundo que dará origem a diversos sistemas de ciência, alguns muito diferentes entre si, como por exemplo a física aristotélica e a física cartesiana. Mas por diferentes que sejam as teorias que surgiram ao longo dos dois milênios em que esta visão de mundo imperou, uma mudança realmente radical a ponto de ser revolucionária só viria a acontecer no século XVI.

7. Segundo momento: Revolução científica

Entre os séculos XVI e XVII, em meio ao Renascimento, um conjunto de novas idéias levaria a uma ruptura radical com a ciência baseada na visão de mundo clássica. O primeiro e mais famoso ataque é creditado a Copérnico, e à ameaçadora concepção de um sistema planetário heliocêntrico. Deslocar a Terra de seu confortável lugar no centro do universo para torná-la apenas mais um planeta a varrer os céus era, sem dúvida, uma mudança gritante, mas a ciência representada por Copérnico ainda não era revolucionária. Seu modelo heliocêntrico explicava alguns fenômenos a mais que seus antecessores, mas criava outros problemas e era demasiado complexo para ser convincente. Além disso, a forma como ele chegou à sua proposta, ou seja, o método, o tipo de ciência que ele praticava, ainda era convencional. Foi Keppler, na verdade, quem fez mais estrago. A partir de dados coletados principalmente por seu mentor, Tycho Brahe, Keppler percebeu que se as órbitas dos planetas fossem elípticas, um modelo heliocêntrico muito simples poderia explicar muito melhor todos os fenômenos astronômicos relevantes à época. Aqui uma nova ciência começava a se desenhar, uma ciência que não se importava em deslocar o centro do universo ou em entortar as órbitas dos planetas, desde que fosse capaz de fazer seus cálculos baterem com as observações. O ideal de um mundo belo e perfeito, desenhado por um designer inteligente, começava a dar lugar a um ideal que considerava apenas a correção matemática. Embora Keppler ainda fosse muito influenciado por uma correlação entre beleza e verdade, sua noção de beleza era matemática.

8. Newton e a unificação da física

Enquanto Keppler decifrava o movimento dos planetas, Galileu foi responsável por semelhante revolução no estudo do movimento dos corpos na Terra. Trajetórias de projéteis, pêndulos, queda livre, a física do movimento fora completamente decifrada e transformada em equações matemáticas. Um último refúgio ainda restava ao pensamento clássico, porém. O fato de que a física da Terra e a dos céus eram incompatíveis. Ainda restava a idéia de que nosso mundo era diferente de um outro mundo, de que haveria uma realidade terrena, e outra celestial. Isso até Newton. Foi preciso nada menos que a invenção de uma nova matemática, o cálculo, e a proposta de uma estranha força que age à distância, a gravidade, para que um gênio levasse a cabo o projeto de unificação da física, e explicasse o todo do universo físico conhecido com apenas quatro leis universais. Quatro leis matemáticas.

"Nature and nature's laws lay hid in night,
 God said, "Let Newton be," and all was light".

Alexander Pope

9. Empirismo?

A revolução científica inaugurou uma nova forma de fazer ciência, mas sua ruptura com o passado não foi, como é usual pensarmos, calcada no empirismo. A necessidade de conformar a teoria com a observação da natureza foi, sem dúvida, confirmada por estes novos cientistas, e é um dos principais pontos metodológicos defendidos por Newton em seu "Principia Mathematica". Mas esta necessidade já operava desde o primeiro movimento científico, desde a física jônica. É verdade que houve Platão, e houve Descartes, representantes de um ideal racionalista que desconfiava da observação do mundo físico como uma ameaça à verdade, mais uma ilusão que uma fonte de dados. Mas também houve a física aristotélica, a mais influente do período, fortemente calcada na observação empírica, e o ideal científico de observar a natureza, levantar hipóteses e realizar testes experimentais sempre esteve presente. Não foi por afirmar o empirismo que a revolução científica foi revolucionária. Ao contrário, sua principal característica foi uma forma de idealismo: a matematização do universo. Foi o esforço de encontrar, para além da impermanência ilusória do mundo físico, uma ordem perene, lógica, perfeita, quantificável: as leis da natureza. Tratava-se de extrair da observação empírica uma lei universal, traduzindo o fato em números. "A matemática é o alfabeto com que Deus escreveu o universo", escreveu Galileu.

Polaridade: quantidade X qualidade (o bom, belo e o justo deixam de ser critérios de verdade, a lógica matemática passa a ser)

10. Terceiro momento: Positivismo lógico

Da nova ciência, pós revolução científica, saíram vários discursos com pretensão ao status epistemológico, dentre eles, a teoria da evolução de Darwin, a psicologia de Freud, a nova física de Einstein e o materialismo histórico de Marx. Este último imediatamente salta aos olhos como a "ovelha negra" do grupo, aquele que rápida e intuitivamente identificamos como um não cientista, estranhamente listado em uma relação de cientistas.  Mas essa intuição depende exatamente da contribuição do positivismo lógico para a história até aqui. Desta doutrina é que sairá o tipo de empirismo que ainda hoje caracteriza a empreitada científica, e que permitirá traçar uma distinção entre disciplinas que não era absolutamente óbvia antes. Todas as quatro teorias listadas acima tinham pretensões científicas, e foram formuladas de modo a atender ao que se considerava científico na época: analisar dados obtidos pela experiência, e a partir desta observação tentar derivar leis universais, regras que permitam descrever os dados e fazer previsões. Os pensadores do positivismo lógico, porém, precisavam de um novo conceito de rigor científico que permitisse a Einstein e Darwin um lugar dentro das fronteiras da ciência, ao mesmo tempo excluindo Freud e Marx, que não os convenciam como teorias merecedoras do status epistemológico.

11. Verificabilidade e sentido

O rigor lógico desta nova doutrina pode ser esquematicamente resumido na frase: não há sentido no que não pode ser verificado pela experiência. Uma afirmação científica deve fazer sentido, e por "fazer sentido" entende-se que deve ser possível atribuir a ela um valor de verdadeiro ou falso. A única forma de se atribuir este valor é verificando pela experiência. Portanto, o que não pode ser verificado pela experiência não tem sentido. Colocando as coisas nestes termos, é fácil ver que a exigência de se ancorar qualquer conceito e qualquer afirmação na verificabilidade pela experiência provê um empirismo muito mais exigente e muito mais radical que o da revolução científica.

Freud podia ser considerado um cientista, nos moldes do renascimento, pois observava seus pacientes, construía hipóteses, testava-as e modificava-as de acordo com suas observações, e construía assim uma proposta teórica de "leis universais" do funcionamento psíquico. Mas não passava no teste do positivismo lógico, pois não ancorava seus conceitos na experiência com o rigor exigido pela verificabilidade. Afirmações como: "existe um super ego", ou "existe um impulso de morte", só podem fazer sentido se for possível atribuir a elas um valor de verdadeiro ou falso, através da verificação experimental. Como isso é impossível, Freud, para o positivismo lógico, simplesmente não faz sentido.

O mesmo sobre Marx, cuja teoria faz a clara previsão de que o alto grau de exploração envolvido no sistema capitalista inevitavelmente levará a uma revolução do proletariado. Esta ocorreria justamente nas condições de maior exploração, ou seja, nas sociedades capitalistas altamente industrializadas. Quando a revolução ocorreu na Rússia rural, isso não serviu para refutar a teoria, apenas gerou novas especulações para mantê-la. A afirmação da tese marxista é de tal forma que não pode ser verificada, pois enquanto não ocorrer continua sendo possível que ocorra, se ocorrer de forma diferente da prevista, como ocorreu, não se estabelece a relação do fato com a teoria, e ainda que ocorra, não restará verificada sua inevitabilidade. Ou seja, pelo positivismo lógico, não se trata sequer de defender que seja uma tese errada, apenas que ela não tem sentido.

Einstein afirmava coisas que eram impossíveis de serem verificadas pelas limitações experimentais da época. Mas os positivistas lógicos reconheciam uma diferença essencial na formalização lógica de suas afirmações. Elas eram verificáveis, em sua estrutura lógica, mesmo que circunstancialmente não o fossem pela prática. Bastava, a partir da nova teoria, desenvolver os recursos experimentais para testá-la. Uma das primeiras verificações da teoria da relatividade foi realizada em Sobral, no Ceará. Sir Eddington mediu o desvio na trajetória da luz provocado pelo Sol, que pela teoria geral da relatividade seria diferente do previsto pela física newtoniana, aproveitando-se de um eclipse total do Sol em 1919. O resultado experimental confirmou as previsões de Einstein com grande exatidão. Einstein elaborou sua teoria, fez uma previsão radical e potencialmente verificável pela experiência, e a experiência eventualmente a confirmou. Isso era, para os positivistas lógicos, a essência da prática científica. Einstein passava no teste.

Darwin, por sua vez, contra as espectativas subjetivas dos positivistas que reconheciam o status epistemológico de sua teoria, estava na corda bamba. A teoria da evolução, em sua formulação original, era claramente científica pelo paradigma do renascimento, mas não passava no crivo deste novo empirismo. Muito por causa da circularidade de sua tese principal: sobrevivem os mais aptos, que reconhecemos por serem aqueles que sobreviveram. Darwin oferecia uma enorme quantidade de dados empíricos, mas nenhuma afirmação verificável pela experiência. A teoria da evolução só foi satisfatoriamente redimida décadas depois, entre os anos 60 e 70, com a reformulação da tese da sobrevivência dos mais aptos para a da sobrevivência de genes em uma população, fenômeno estatisticamente verificável.

Chegamos a uma visão da ciência como um discurso racional, quantificável, estritamente limitado às afirmações que podem ser empiricamente verificadas, e orientado para a verdade. Este é o ápice da ciência objetiva (verdade, número, verificabilidade), e é o modelo de ciência mais influente até hoje.

12. A reação humanista

É interessante notar que o esforço extremo de verificabilidade empírica proposto pelo positivismo lógico foi exatamente o que o distanciou do realismo. Um exercício de pensamento que ilustra bem isso é a questão: "Se uma árvore cai no meio da floresta quando não há ninguém por perto para ouvir, ela emite som?". Nossa intuição realista, alimentada por nosso conhecimento científico, leva a maior parte das pessoas a concluir que sim, independente de haver alguém para registrar o fato, há vibração material e deslocamento de ar gerando uma onda sonora. Mas a única resposta coerente para um positivista lógico seria: "Esta pergunta não faz sentido". Claro, porque a pergunta pode ser formulada como: "O que acontece quando não há ninguém para verificar o que acontece?", e a estrutura dessa pergunta é tal que ela não pode ser verificada, e portanto não pode ter um valor de verdadeiro ou falso atribuído a ela, e portanto não faz sentido. É útil que o positivismo lógico seja capaz de propor um rigor contra-intuitivo para demarcar o que é ciência e o que não é, pois essa demarcação não deveria ficar por conta de nossa intuição. Einstein e sua física relativística altamente contra-intuitiva passaram a exigir isso. Mas que fazer com a intuição realista? Que fazer com nossa experiência subjetiva de que a ciência goza de um status epistemológico e que podemos assim concluir coisas sobre como o mundo realmente é? Inclusive que é óbvio que uma árvore caindo emite som mesmo que não haja ninguém lá para verificar? A derrocada do positivismo lógico veio justamente de pensadores que não eram exatamente contrários a ele. Thomas Khun, um físico, mostrou que a ciência sofre grande influência de paradigmas históricos e culturais. Karl Popper, aplicando a mesma filosofia radicalmente lógica dos positivistas, atacou o critério de verificabilidade, e propôs que as afirmações científicas só podem ser consideradas verdadeiras enquanto não forem falsificadas. E Quine, que se considerava um positivista lógico, deu o derradeiro tiro no pé do movimento ao levar suas conclusões às últimas consequências e mostrar que nenhuma afirmação isolada podia ter valor de verdadeira ou falsa por compor uma rede de crenças (web of belief) com incontáveis outras afirmações e pressuposições. O empirismo radical levaria a ciência positivista a se distanciar do realismo, a crença de que os dados científicos traduzem o que realmente acontece na natureza, um componente importante do subjetivo status epistemológico que queremos atribuir aos dados científicos. O positivismo expunha a jugular a ataque, e se houvesse algum inimigo à espreita, bastaria morder. Obviamente, havia muitos inimigos à espreita. Ora, o positivismo lógico acabara de concluir que todos os discursos pretensamente científicos das disciplinas de humanidades eram apenas blablablá. "Não fique triste, não estou dizendo que o trabalho de sua vida está errado. Só que ele não faz nenhum sentido", diriam os positivistas, e é claro que a resposta dos humanistas não seria: "Tem razão, melhor eu tentar a sorte como pedreiro, então". Não, a reação veio, principalmente, em um tipo de discurso que pode ser conjuntamente chamado de sociologia da ciência. Uma proposta de investigar como a ciência acontece, de identificar as influências extra-científicas que agem sobre ela, e de relativizar o status epistemológico de seus dados, que passariam a ser compreendidos como construções sociais, não mais como tradução direta da realidade.

13. Science wars

 Como resultado deste processo, as disciplinas científicas nas duas grandes áreas, ciências da natureza e ciências humanas, tornaram-se cada vez mais diferentes e não sem certo antagonismo. No entanto, as ciências naturais desenvolveram tanta capacidade preditiva e levaram a tão grande progresso, que não tardou para que seus métodos passassem a ser incorporados pelas ciências humanas. O exemplo da psicologia é claro: os discursos subjetivos, especulativos, que imperavam desde Freud, foram sendo paulatinamente substituídos por uma redução do psicológico ao seu menor componente observável, quantificável e verificável, o comportamento. Em todas as áreas das humanidades passou a acontecer, com maior ou menor êxito, uma adaptação de práticas e métodos para torná-las mais objetivas e, quem sabe, mais preditivas e eficazes. E quanto mais abissal a diferença entre dois tipos de discurso, maior a chance de que o debate construtivo degenere em mal estar e trocas de acusações. Foi o que levou ao episódio conhecido como "science wars", quando durante as décadas de 80 e 90, em diversas publicações e congressos, cientistas, filósofos e sociólogos transformaram a disputa por status epistemológico em uma guerra que repercutiu até na imprensa leiga. O ponto alto da infeliz disputa foi o episódio protagonizado pelo físico Alan Sokal, que escreveu um texto pretensamente sobre sociologia da ciência, e conseguiu publicá-lo em uma edição especial sobre as "science wars" na revista "Social Text", da Duke University. Depois, Sokal publicaria um outro artigo em que descrevia um "experimento científico",  revelando que o texto enviado àquela revista era apenas uma colagem de frases rebuscadas e ininteligíveis e que não fazia nenhum sentido, tendo com sua aprovação para publicação provado que ninguém realmente sabia do que estava falando quando fazia sociologia da ciência. O episódio ainda gerou uma resposta dura, mas até conciliatória, de Derrida, embora, obviamente, tenha servido apenas para mostrar que a disputa havia chegado a um ponto além da interlocução produtiva.

14. Nos ombros de gigantes

A disputa por status epistemológico não terminou, e há quem duvide que ela termine algum dia. O que eu tenho chamado de disputa por status também é conhecido por outro nome: o problema da demarcação. A dificuldade aparentemente insolucionável de se definir um critério claro de ciência, que destrinche o conhecimento científico do não científico, da mesma maneira como a ciência pretende destrinchar a verdade da ilusão. Talvez a dificuldade resida no fato de que demarcação, e status epistemológico, sejam conceitos extra científicos, e quanto mais sucesso as ciências têm mais elas tentam negar a validade de qualquer discurso extra científico. Cientistas querem acreditar que só eles podem falar sobre ciência, que o que é possível ser dito sobre ela é apenas o que é possível ser dito por ela. Alguma noção de história da ciência, como a que tentei transmitir aqui, por superficial que seja, oferece inúmeras oportunidades para que se reconheça o quanto o progresso científico depende não só de cientistas que extrapolem métodos, mas também daqueles que têm a capacidade de articular os discursos extra científicos que permitem as próprias formulações metodológicas. Newton, uma das mentes mais brilhantes que a humanidade já conheceu, deixou a modesta confissão: "Se enxerguei mais longe, foi porque subi nos ombros de gigantes". Para além de uma demonstração de humildade, e do reconhecimento da ciência como uma prática coletiva, a frase também contém o sentido de que o progresso só é possível a partir do conhecimento do passado. A ciência como conhecemos hoje é a melhor que já existiu, mas não é a melhor possível. Já sentimos em muitas disciplinas as limitações dos métodos existentes, e seria ingenuidade histórica não admitir que eventualmente qualquer progresso será impossível dentro destas limitações. Lá, no fim do método, os pequenos continuarão batendo a cabeça contra a parede, enquanto os que subirem nos ombros dos gigantes da história enxergarão mais longe.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Filosofia Joyceana - Experimento de fluxo da consciência sobre uma teoria da mente

Pensar sobre meus pensamentos é uma atividade complexa e cheia de consequências porque ela é infinitamente redundante. Eu estou escrevendo essas linhas exatamente como as estou pensando mas isso obviamente não acontece assim. Não é nunca exatamente como eu as estou pensando, por mais que eu me esforce, porque eu estou sempre pensando sobre o que estou pensando, e penso mais rápido do que escrevo então estou sempre voltando um pouco e além de voltar um pouco também projeto um pouco, projeto um bom tanto na verdade porque algum conteúdo imagético de tudo o que será escrito pensado já toma alguma forma mesmo enquanto estou no presente escrevendo este passado. E agora parei para pensar no que escrever a seguir, então vê, já não é exatamente o que eu penso. Estou consciente de que estou pensando o que estou pensando, ou digamos, eu posso afirmar que acredito que estou pensando o que estou pensando. E acredito que estou pensando que estou pensando o que estou pensando e posso afirmar isso indefinidamente. Acho que tem duas saídas para isso. Uma é postular que apenas essa afirmação de que posso pensar sobre meus pensamentos é o que me faz consciente (Rosenthal) ou que se todas as afirmações secundárias, terciárias, e adiante, sobre pensar o que estou pensando parecem redundantes, pouco reais, então talvez a primária também seja. Talvez afirmar que eu sei que estou pensando seja irreal, apenas redundância, e que ser consciente é simplesmente ter esse fluxo de pensamentos, seja qual for seu conteúdo, sobre o mundo ou sobre meus pensamentos, representação ou reflexão, tudo é apenas o meu fluxo de consciência, como na "joycean machine" de Daniel Dennett: a consciência pode ser apenas um fluxo incessante de perceptos, como o estilo literário explorado por Joyce, Svevo e Faulkner, por exemplo. Ser consciente de mim mesmo pode não significar nada?
O filósofo australiano David Chalmers cunhou o termo "the hard problem". Australiano, parece tão estranho um filósofo australiano, e cheque-o no Google images, com seu cabelo de roqueiro anos 80 e jaqueta de couro, eu posso vê-lo saindo da universidade em uma harley, ou matutando fazendo filosofia de poltrona em uma poltrona impregnada de cheiro de cânhamo queimado, não ajuda nada quando temos que acreditar em sua espécie de dualismo, mas enfim. Hard problem é afirmar que resolver todos os problemas funcionais não resolve o problema da consciência, seja, descrever um modelo detalhado e neuroanatomicofisiologicofuncionalmente perfeito ainda assim não daria conta de explicar como é ser eu. Pode explicar tudo o que eu faço, mas não como é ser eu. Da mesma forma que conhecer exata e perfeitamente o funcionamento sensorial de um morcego não me ajudará jamais a saber como é ser um morcego. Ou como a pobre Mary, provavelmente a segunda Mary fictícia mais comentada do mundo, a fisiologista de cores que sabe tudo o que há para saber sobre a física e a neurofisiologia da percepção de cores mas foi criada desde a infância em um laboratório completamente em branco e preto e quando exposta ao vermelho pela primeira vez, será que ela aprende algo novo? A experiência de como é ver vermelho será algo novo, ou ela já sabe tudo o que há para saber sobre o vermelho? Se houver algo novo, que raios? The hard problem. Chalmers acha que saber como é ser algo ("qualia" é o nome que os filósofos dão para saber como é ser algo), é algo. Existe. É diferente da soma das funções. Diz que defende um certo dualismo, "property dualism", como em: existe uma só coisa mas uma propriedade dessa coisa é matéria e o mundo físico e outra é mente e consciência. Se não fosse a cabeleira... Mas quem surpreendentemente defende um "property dualism" e não tem cabeleira do Scorpions é Cristof Koch, e ele colaborou com Watson Crick que não se chamava Watson, pobre Francis, mas é aquele Crick mesmo, o do Watson, como dizem, você só pode se dedicar academicamente ao problema da consciência se você tiver cabelos brancos e um prêmio Nobel. Mas Crick e Koch colaboraram durante décadas como talvez os principais fisicalistas, investigadores do mínimo substrato neural da consciência, procurando a pineal cartesiana dos tempos modernos (Descartes achava que a glândula pineal fazia a ponte entre a mente pensamento e o cérebro matéria), mas de modo a explicar tudo materialmente é claro. Materialismo, vamos lá! Mas aí me vem Koch em seu último livro dizer que dualismo rocks, mesmo sem cabeleira. Segundo ele a consciência é uma propriedade da matéria, como carga elétrica. Ok, nem é tão ruim, quer dizer, o que significa dizer que elétron tem spin? Que quarks têm cor? Nada, além de dizer: atribuamos uma propriedade x a esta partícula para diferenciar um estado 1 de outro -1 e olha só! agora nosso modelo matemático funciona. Claro, o modelo funcionar quer dizer ser extremamente preditivo em um nível estatisticamente embasbacante então isso deve representar algo sobre o mundo real, físico, afinal, o modelo é perfeito e tal, mas ainda assim, quarks não têm cor. E talvez matéria não tenha consciência. Mas se o modelo que usa essa propriedade fosse preditivo de alguma coisa, aí iríamos achar que toda matéria tem consciência como achamos que tem carga. Koch acha que é, usando a teoria de informação integrada de Giulio Tononi, possível estabelecer um modelo matemático preditivo do grau de consciência de um sistema, mas acho que ele ainda não provou nada, até porque, o sistema de informação com mais capacidade de integração que conhecemos sem contar os cérebros de animais desenvolvidos seria a internet e, segundo Koch, ele acha que ela ainda não é consciente, ainda. E também, se fosse, como diabos saberíamos? Eu não sei se ninguém mais é consciente além de mim, a menos que eu considere consciente tudo o que se comporta como se fosse, quando visto de um ponto de vista externo, o meu, e aí não haveria o Hard Problem porque então bastaria explicar todo esse comportamento "como se fosse" e eu não precisaria achar que saber como é ser eu tenha qualquer relevância para o problema da consciência. E se eu puder fazer isso, aí eu fico com o materialismo mesmo, muito obrigado. Mas Koch acha que existe algo que é como é ser um cachorro, como é ser um morcego, e talvez, como é ser a internet, e, em princípio, como é ser qualquer coisa material porque matéria tem essa propriedade, bastando estar organizada em um sistema integrado de informações para saber como é ser matéria. É um "property dualism" e um panpsiquismo, é praticamente Spinoza back with a vengeance à luz da física moderna.
Qualquer matéria é informação, é verdade, não é? Quer dizer, qualquer diminuição de incerteza, determinação, diminuição de entropia, é definição de informação, na verdade isso é mesmo definição de informação para alguém, que não lembro quem, mas é uma definição formal. Faz sentido, uma partícula informa que existe, no mínimo, mas dizem que informa até se tem spin -1 ou 1, ou se tem cor, ou se é uma corda ou um laço (string vs loop theories), e toda matéria é diminuição de incerteza, de entropia, é um estado qualquer minimamente organizado que pode ser irreversivelmente desfeito. Havendo só energia em fluxo, à máxima velocidade, não há matéria, não há informação, não há espaço e não há tempo. Matéria é desaceleração, é resistência a movimento, F=ma, é paragem (Bergson), é dobra, reentrância, ondulação, é uma ranhura no fluxo incessante de energia do universo e se essa coisinha puder perdurar um pouquinho, só um pouco, um instante, umas centenas de milhõezinhos de anos se tanto, só o tempo suficiente para se organizar em um sistema que integre suas informações, que retenha um pouco de sua história memória, talvez ela possa saber como é que é ser ela.
Mas o hard problem não é o meu maior problema, eu consigo imaginar sem dificuldades uma mente materialista que saiba tudo o que é possível saber sobre como é ser ela sem que isso seja uma outra coisa além da soma de todas as funções do cérebro materialista que a abriga. O que me intriga é essa regressão infinita a alguma instância imaterial que é quem toma decisões. Eu penso meus pensamentos, que são só matéria em movimento dentro do meu cérebro, mas quem é que sabe que eu penso? Quem entende o que eu penso, decide o que eu penso e formula o que eu digo ou escrevo? Todo o processo pelo qual eu penso em algo enquanto estou escrevendo acontece enquanto meu cérebro cuida de todos os movimentos materiais de informações entre neurônios para que eu escreva, meu córtex frontal elabora um plano motor, meu giro pré-central o executa, em perfeita sincronia com receptores proprioceptivos nos meus dedos, mãos, braços, monitorados pelo cerebelo, toda essa orquestra acontece porque eu pensei no que eu queria escrever. Mas um pensamento não pode mover meu cérebro, então um pensamento não pode começar tudo isso, a menos que um pensamento seja só movimento no meu cérebro porque um movimento de matéria pode gerar outro movimento de matéria. Mas se movimento gera movimento, e todo pensamento é matéria, quem começou o primeiro pensamento de uma certa cadeia? Quem foi que decidiu mover meu braço? Eu pensei e ele moveu, mas o pensamento que deu a ordem tem que ser matéria, e antes dele matéria, e então foi um movimento (Bergson chamava de vibração), então foi uma vibração no meu cérebro que começou tudo, e então não fui eu, a menos que eu seja só uma vibração no meu cérebro. Ficar só com o materialismo, que parece tão mais óbvio, requer mudanças radicais em como eu penso como é que é ser eu. Seria preciso imaginar que meu cérebro "pensa", o tempo todo, sem parar, um pandemônio (palavra de fato usada por Dennett) de pensamentos entendidos como vibrações, em resposta aos milhões de vibrações da matéria do mundo físico afetando meus sentidos, vibrando meu cérebro e gerando movimentos, um mar de vibrações que vão competir, moduladas por contexto e mecanismos de adaptação ao meio orientados a algum objetivo todo ele mecanicamente biologicamente determinado, todo esse maremoto afunilado e transformado em uma espécie de fluxo, meu fluxo, o fluxo que sou eu, produto da Joycean Machine. Fluxo de consciência. Parece que volta para o tal fluxo de energia incessantemente propagado desde o Big Bang, desacelerado nessa vibração que é matéria, que quer manter-se, resistir à tendência entrópica de se dissolver, quer continuar existindo e impressionando-se por outras vibrações, companheiras nessa condição de absoluta aberração estatística do universo que é todo estado anti-entrópico, como todo ser vivo. Perceber que somos fluxo é a base para uma teoria da mente, mas também de uma ética. Sistematizá-la, porém, não é trabalho para um exercício de fluxo.

domingo, 9 de setembro de 2012

Educação e a Ética da Virtude

Recentemente eu me meti a escrever dois textos sobre educação, tentando dar forma a algumas reflexões que venho tendo como pai de primeira viagem. Embora tenham sido, realmente, sobre educação, eles também eram textos sobre um outro assunto, que ficou subjacente, e que é realmente o tema que mais tem me interessado, tanto pessoal quanto profissionalmente: ambos eram textos sobre ética. Mais especificamente, sobre uma forma de se pensar a ética que tem sido chamada de ética da virtude.
 
No último texto, sobre palmadas, eu falei de duas formas de se julgar o valor moral de uma ação. A forma utilitarista, ou consequencialista, vai julgar se a palmada é boa ou não com base nas consequências que ela gera. E a forma deontológica vai se preocupar com algum princípio moral, uma regra de conduta. Por praticamente dois séculos a discussão moral foi polarizada por essas duas vertentes, porque elas permitem argumentos bem objetivos. O utilitarismo chega a quantificar matematicamente, fazer gráficos, que medem as consequências positivas versus as negativas e com isso aprova ou não a legitimidade moral de uma conduta.
 
Mas que outra opção temos, além de avaliar a moral por regras ou por consequências? A ética da virtude irá propor uma terceira via, ao dizer que devemos avaliar o caráter de uma ação pelo caráter do agente. Uma boa ação é aquela praticada por um homem bom. Uma ação justa é aquela praticada por um homem justo. Parece estranho? Parece um pouco. Mas vejamos o que isso significa na prática.

 
 Eu apanhei de meus pais. Eu e minhas irmãs, quando nos comportávamos mal, éramos devidamente colocados de bruços sobre as pernas de minha mãe e recebíamos sonoras chineladas na bunda. Éramos três, e nos momentos de maior agitação ou confusão, também levávamos boas palmadas menos sistemáticas. Eu me lembro que estava já na faculdade quando ouvi pela primeira vez uma discussão mais formal sobre uma possível lei para abolir as palmadas e achei aquilo um absurdo. Por que proibir? Eu apanhei minha infância toda e nunca senti que aquilo tivesse sido um problema, nem remotamente. Pelo contrário, tive sempre uma impressão tão boa de meus pais, de minha família e da minha infância, que a idéia de que a forma como eu fui criado pudesse ser considerada ilegal me pareceu uma afronta. Outras pessoas, porém, nunca apanharam de seus pais e consideravam o ato alguma coisa de hediondo. E outras ainda, apanharam de seus pais e sentiam-se traumatizadas por isso, ou ao menos prefeririam que tivessem sido tratadas de outra maneira. Quando a discussão vai a público, e pretende-se formular uma lei, ela passa a ser colocada de forma objetiva. Queremos um parâmetro claro, científico, que diga o que é certo ou errado. Queremos avaliar a ação por alguma regra clara, ou por consequências mensuráveis. Mas algumas questões são propriamente questões morais, e deveriam ser colocadas em termos de valores, não de fatos. Como é possível que eu tenha apanhado de meus pais e me sinta tão bem educado por eles, enquanto outros se sentem tão mal por isso? Como achar a regra clara ou a medida absoluta das consequências, que compatibilize vivências tão diferentes?
 
Segundo a ética da virtude, uma boa educação é aquela levada a cabo por um pai ou uma mãe que sejam bons educadores, ou seja, que tenham a virtude de saber educar. Bater nos filhos pode, ou não, fazer parte de uma boa educação, mas isso não depende de uma regra absoluta, nem de consequências mensuráveis. Depende do caráter do educador. Bons educadores, pais virtuosos, não se submetem a uma regra maior que eles mesmos, nem ficam avaliando consequências, embora possam fazê-lo quando lhes parecer apropriado. Pais virtuosos o são em todas as suas ações, pois essa virtude impregna-lhes o caráter. Eles se interessam por educação, e emocionam-se ao educar seus filhos. Reconhecem essa virtude em outras crianças e em outros pais, e esse reconhecimento é bom, é alegre, une-os em torno de um mesmo ideal, mesmo que discordem em alguns valores individuais. Prestam atenção em educação, em seus filhos, e em seus valores. Vêem-se naturalmente interessados em reportagens, livros ou comentários que ouçam a respeito do tema. Seus ânimos, suas disposições, voltam-se para esses temas como uma pedra se volta para o chão. Percebem quando agem bem, pois se sentem tomados de alegria, e não há lei, regra ou medida no mundo que possa fazê-los se desviar daquilo que sentem, com todas as forças, que é a ação em conformidade com a virtude, que é a boa educação.
 
 
Mas como saber? Como ser um bom educador? Bem, ninguém nasce virtuoso. Na forma mais clássica de ética da virtude, que é basicamente a ética de Aristóteles, existe o conceito, do grego, de "phronesis", uma espécie de sabedoria prática, a capacidade de reconhecer em cada situação qual a maneira correta de agir. Esta sabedoria se adquire, se desenvolve na prática, através da experiência e da convivência com a sociedade. Pensar por esse molde da ética da virtude não é uma espécie de garantia contra o erro. Se a boa educação é aquela provida por um bom educador, poder-se-ia entender que qualquer coisa que este fizer será sempre acertada. Não é assim. A idéia é que exista uma forma ideal da boa educação, e o bom educador é aquele se pauta por ela. Ele pode errar. Talvez a palmada não devesse fazer parte de uma boa educação, mas não é por bater ou não que se define o caráter do bom educador. Talvez haja momentos em que bater seja adequado, e momentos em que não, mas a angústia de saber distingui-los não deveria ser resolvida por uma regra pré-definida, uma receita de bolo, ou por qualquer critério que tire da jogada aquele que é o critério mais importante, mais fundamental: a sabedoria e a disposição para a virtude do educador.

 
 A ética da virtude vem experimentando um ressurgimento nos últimos cinqüenta anos, mais ou menos. Este ocorreu em grande parte como uma reação à forma cada vez mais fria, rígida, objetiva e pretensamente científica que a filosofia moral vinha colocando seus problemas. Essa reação vem ganhando força e influência, mas ainda é relativamente recente. Muitas particularidades desse pensamento ainda não foram suficientemente aprofundadas, e alguns de seus problemas ainda não foram satisfatoriamente endereçados.

 
Após séculos relegadas a segundo plano, temos dificuldade para encontrar um espaço para as virtudes em nossa sensibilidade contemporânea. Devemos criar nossos filhos para serem virtuosos, ou seja, segundo essa ótica, para terem uma disposição para agir bem e uma sabedoria prática para nortear suas ações. Mas que virtudes devemos ensinar? Honestidade? Lealdade? Temperança? Fraternidade? Coragem? São muitas as virtudes clássicas, mas sabemos como elas entram e saem de moda, tornam-se mais ou menos relevantes, e é difícil assumi-las como verdades atemporais. Por exemplo, há cinquenta anos atrás um funcionário leal com décadas de empresa era valorizado, enquanto hoje um jovem que passe dois anos em uma mesma empresa começa a parecer um acomodado. Lealdade e experiência eram virtudes muito importantes, mas hoje, agilidade e ambição são mais. No Texas, a coragem para defender sua família de um assaltante com uma arma é uma virtude. No Brasil, é uma idiotice. Aquilo que aprendemos como virtude e sabedoria prática muda demais, com o tempo e a sociedade em questão, e foi esse exatamente o apelo que levou o utilitarismo a se tornar tão influente, por propor uma forma objetiva de distinguir certo e errado.

 
 Ainda não há uma resposta exata para essas questões. Não temos como saber quais virtudes devemos ensinar, quais valores especificamente devemos sempre defender. Mas também não podemos nos deixar cair em um relativismo total em que o bom é aquilo que a cada um lhe parece. A palavra grega para virtude é "areté", que quer dizer, mais precisamente, excelência. A questão que se põe, para a educação e para a ética da virtude, é: o que constitui a excelência do ser humano? O que significa viver de acordo com a virtude, ou seja, viver de forma a expressar ao máximo a essência do homem e da humanidade? Pode ser que não conheçamos uma resposta absoluta para essa questão, pode ser que ela não exista. Mas podemos sentir, em nós, e em nossa disposição para a vida prática, algo que reconhecemos como bom. E não há nada mais importante que possamos fazer por nossos filhos que ensinar isso a eles. Torná-los tão capazes quanto nós, mesmo que sejamos ainda tão incapazes, de perseguir a virtude.

 
Por isso eu disse no primeiro texto: para educar bem, eduque-se. Torne-se uma pessoa melhor, mais sábia e mais virtuosa. Preocupe-se em desenvolver essa virtude, essa disposição de ânimo, de inspirar-se pela educação. Você vai perceber que educar é um processo contínuo e bilateral, pois você tem tanto a aprender quanto seu filho, e ambos estão, essencialmente, aprendendo a mesma coisa. Nada se compara à alegria de descobrir-se cada vez menos um professor, e cada vez mais um companheiro de seu filho nessa aventura de se tornar um ser humano melhor.




quinta-feira, 26 de julho de 2012

Castigos, palmadas, e um pouco de moralismo

Nos últimos dias vi-me novamente empenhado em um debate com minha esposa sobre educação. Dessa vez não fomos inspirados por nenhuma reportagem, mas enfim, como pais de primeira viagem que somos, o assunto vive recorrendo. Desta vez o tema era o castigo físico como medida educativa.
Eu e minha mulher conversamos muito, tentando explorar o que nós mesmos pensamos sobre o assunto. Para ela, foi fácil afirmar que gostaria de educar nossa filha sem palmadas. Mas ela humildemente admitiu que nossas experiências até agora, com uma bebê de um ano, não nos permitem prever as situações mais extremas com que poderemos nos deparar, e exatamente como reagiríamos. Por exemplo, se uma criança de dois a três anos de repente sai correndo para o meio da rua. Nessa idade uma criança não é muito capaz de compreender a gravidade do que fez só por uma conversa. Haveria outra alternativa tão eficaz quanto uma palmada para deixar claro que ela nunca mais deveria fazer aquilo?

O caminho que percorremos para chegar a uma possível resposta mostrou-se uma boa oportunidade para exemplificar os dois instrumentos que considerei essenciais aos pais para uma boa educação no meu último texto: (1) Clareza dos seus valores morais e (2) Noções de desenvolvimento psicossocial infantil.

Comecemos então pela questão de valores. O que você pensa sobre a palmada? É certo, bom, ou ao menos justificável bater nos filhos no contexto educativo? Notem que aqui não estamos falando de agressão física gratuita, nem gravemente violenta, mas da famosa palmada educativa. E também não vale uma reposta do tipo "depende da situação", por que isso é óbvio, uma vez que ninguém advoga palmadas a torto e a direito por qualquer coisa. A questão é: existe alguma justificativa moral para a palmada em alguma situação?

Eu vou tentar chegar a uma resposta, mas será, é claro, a minha reposta. O objetivo deste texto, porém, não é dar receita de bolo, mas mostrar o valioso instrumento que é desenvolver a clareza de seus valores morais.

Para começar a pensar sobre valores, sugiro que façamos uma divisão bem básica entre duas visões éticas:
A primeira, conhecida por ética utilitarista, consiste na idéia de que nosso julgamento sobre o valor moral de uma ação depende das consequências dela. Ou seja, a palmada poderia ser justificada se ela resultar em algo bom. Quando perguntamos se a agressão física pode ou não resultar em um trauma para a criança, estamos pensando segundo essa ética utilitarista. Estamos pressupondo que se a palmada não trouxer consequências negativas maiores do que o benefício de ensinar um comportamento desejável, então ela pode ser empregada.
A outra forma básica de se pensar sobre valores é a ética deontológica. O nome difícil esconde uma idéia simples: trata-se de atrelar o valor moral de uma ação ao motivo dela, não importando a consequência. Ou, melhor dizendo, de julgar o caráter de uma ação por um princípio moral, uma espécie de regra sobre o que é certo ou errado independente do resultado desta ação. Este tipo de pensamento anda meio fora de moda. No mundo moderno olhamos com desconfiança para a idéia de um gabarito moral, de um princípio ético básico, porque vivemos em um mundo pluralista aberto a diferentes interpretações de valores.

E você, o que acha? Ao decidir se vale ou não lançar mão da palmada na educação de seus filhos, você acha que o faz por uma questão utilitarista (se faz mais bem ou mais mal), ou por uma questão de princípios?

As discussões que vemos a respeito desse tema costumam levar sempre em conta uma ótica utilitarista. Discute-se se a palmada vai causar traumas, se vai ensinar o uso da violência, ou se é, afinal, eficaz. Para alguns pais, porém, pode ser que não importe se é eficaz ou se traumatiza. Para alguns isso pode ser algo considerado simplesmente errado, por um valor moral.
Vivemos em uma sociedade avessa à discussão nestes termos. Achamos que apelar para um princípio moral pode parecer desrespeitoso, intrusivo. Em um debate público, seja em uma conversa entre amigos, fórum de internet ou programa de televisão, queremos sempre evitar parecer moralistas, e por isso imperam as discussões utilitaristas. Tem vantagem? É eficaz? Faz mal?

Talvez seja bom que isso funcione assim nos debate públicos, mas com certeza não é bom que isso funcione assim na sua casa, na sua vida pessoal, e na educação dos seus filhos. Para você e para sua família, deve valer aquilo que lhe faz sentido, e você deve considerar essas questões da forma que lhe parecer a mais correta. Se for a utilitarista, leve os dados sobre as consequências em conta e decida como educar. Agora, se você pensa de forma deontológica, leve as discussões públicas em conta, é claro, mas não tenha medo de validar os seus próprios princípios morais, e viver e educar seus filhos de acordo com eles.

Como eu resolvi a questão para mim? Bom, entre essas duas formas básicas de se pensar sobre valores há inúmeros tons de cinza, e ainda há outra formas, entre as quais se encontra a que eu mais me identifico. Mas, para tentar me ater a essas duas, eu aproximaria a minha forma de pensar à ética deontológica, pois há um certo princípio básico que norteia minhas decisões morais, na minha vida e na educação de minha filha. Esse princípio vem atrelado a uma idéia, ou ideal, de ser humano: acho que o ser humano é tão mais feliz, mais completo, e em certo sentido vive uma vida tão melhor quanto mais potência de ação ele tem. Acho que a palmada ensina que algo não deve ser feito em hipótese nenhuma, a ponto de justificar o uso de violência para coibir, efetivamente traçando um claro limite no repertório de ações da criança. Acho que outras formas de educar podem ensinar à criança que ela não deve decidir por certas atitudes, fornecendo parâmetros de ação, e não limites.

É claro que eu quero que minha filha aprenda a jamais correr para o meio da rua. O ponto é que eu vejo uma diferença entre uma criança, ou qualquer ser humano, que sinta que uma ação lhe é absolutamente proibida, e um ser humano que sinta que escolhe não realizar uma certa ação absolutamente. Veja que não se trata de uma diferença utilitarista, uma vez que o resultado de qualquer intervenção eficaz nesse caso é o mesmo: a criança não correrá para a rua. A diferença é que, por princípio, eu atribuo um valor moral mais alto a uma conduta que respeita ao máximo a potência de ação de cada indivíduo, que a uma que diminua essa potência.

Essa distinção entre limites e parâmetros pode parecer uma sutileza desprezível. Mas, para mim, a cada momento ao longo de toda a sua existência, quando um ser humano sente que uma ação está além de seus limites ele se entristece e se diminui como pessoa. E a cada momento que um ser humano decide que uma ação está descartada por não corresponder aos parâmetros que ele aprendeu a traçar para si mesmo como um ser moral, ele se reafirma, e é mais feliz. Por isso, para mim, essa distinção é fundamental. Para mim. Para você pode ser diferente, e isso não é nenhum problema. Como eu já disse antes, só você pode saber o que é importante na educação de seu filho, mas você tem que saber.

Agora, se eu continuar essa discussão assumindo que, por princípio, não vamos empregar a palmada, então como ensinar para uma criança de 3 anos, por exemplo, que ela não deve correr para a rua? Aqui entramos no segundo instrumento: as noções de desenvolvimento psicossocial infantil.

É comum ouvirmos que crianças, principalmente as pequenas, precisam de limites. A idéia é que enquanto elas ainda não têm a capacidade de desenvolver um senso moral autônomo, ou o discernimento para se comprometer com algumas condutas, a única coisa que pode fazê-las aprender o que é errado é isto ser apresentado como absolutamente proibido. E isso está certo em grande medida. Não dá para conversar com uma criança de três anos, como é possível fazer com um adolescente, para mostrar que uma conduta é possível, mas não correta. Crianças menores devem aprender simplesmente que algo não deve ser feito, e pronto. Será que ainda assim vale a distinção entre limite e parâmetro que usei para condenar a palmada? Se a criança é tão pequena que ainda não dá para apelar ao seu senso moral, então um castigo mais duro e a imposição de um limite, mesmo que violento, não é inevitável? Ou ainda, melhor dizendo, mesmo que a palmada não seja inevitável, mas será que ela é realmente diferente de qualquer outra forma de impor um limite, já que ele terá que ser coercivo de qualquer forma?

O que nos permite chegar a uma resposta a essa pergunta é esse segundo instrumento, o desenvolvimento infantil. Quando estudamos crianças, e como elas se desenvolvem, descobrimos coisas fascinantes. Descobrimos, por exemplo, que crianças têm, sim, um senso de certo e errado, um senso moral. Ele só é muito diferente, é claro, do que o de um adulto, mas ele está lá. Se um adulto pode decidir sobre o que é certo ou errado com base em complexos e abstratos parâmetros morais, e um adolescente pode ser ensinado a pensar moralmente por si próprio, uma criança de qualquer idade também pode, desde que compreendamos qual é a "linguagem moral" de que ela é capaz.

Há diversas teorias sobre o desenvolvimento infantil, e eu não tenho pudores em me apropriar daquela que me parece mais útil em determinado momento. Nesse caso, gostaria de usar a teoria de Erik Erikson, um estudioso de orientação psicanalítica que expandiu grandemente o trabalho de Freud sobre o tema. Erikson sugeriu que o desenvolvimento humano possa ser dividido em oito fases, e que cada uma delas se caracterizaria por nossos esforços para resolver um grande conflito. Por exemplo, para uma criança entre um ano e meio e três anos, o conflito é entre autonomia e vergonha. Ela sente que é capaz de fazer mais coisas sozinhas, aprendeu a andar por sua própria conta e quer explorar o mundo. O que a limita é o medo de se envergonhar ao fazer algo errado e decepcionar os pais. Nesse embrião de senso moral, bom é descobrir uma nova ação bem recebida, e mal é passar vergonha, por uma reprovação dos pais.

Ou seja, quem acha que pode conversar sem precisar bater em seu filho adolescente para educá-lo, também pode fazê-lo com seu filho de três anos. Basta usar o que ele entende por bom e mal. Ele pode desde muito cedo passar pela experiência de decidir por si mesmo que não deve correr para a rua, mas ele não decidirá corretamente porque é perigoso, ou porque é errado, mas porque seus pais se decepcionarão com ele. Ele também decidirá corretamente se aprender que o resultado dessa ação é levar uma palmada, mas aí ele não passará pela experiência de que foi ele que decidiu não fazer isso com base no seu senso moral. Passará apenas pela experiência de que não teve opção.

Essa idéia pode parecer meio estranha. Ao invés de palmadas, garantir que ele sinta vergonha do que fez? Será que isso é realmente melhor? Explorar a vergonha não pode ser ainda mais traumático, ou talvez até mais errado, do que uma palmadinha?

Bem, em primeiro lugar, a palmada também é muito vexatória. Mas mais do que isso, embora pareça estranho, evocar essa sensação de vergonha não é diferente de evocar qualquer outro parâmetro que se queira para justificar a moralidade de uma conduta. Ao longo do desenvolvimento vamos aprendendo a agregar outros parâmetros além da vergonha, como culpa, solidariedade, amor, respeito, justiça, e nosso senso moral vai ficando mais complexo. A própria vergonha nunca deixa de fazer parte dos parâmetros que nos movem agir da forma que achamos certa. Para uma criança de três anos, porém, ela é, talvez, o único parâmetro acessível. E ainda, se pensarmos bem, isso é o que acontece nessa mesma fase no treinamento de toalete. Você pode bater o papo cabeça que quiser para convencer seu filho a fazer suas necessidades na cadeirinha, mas a verdade é que a motivação que ele tem para obedecer é a vontade de corresponder à expectativa que você tem dele, e não se envergonhar ao decepcioná-lo.

É claro que explorar a vergonha não significa humilhar a criança. Trocar a agressão física pela verbal não resolve grande coisa. Uma criança nessa fase deve ter confiança suficiente no vinculo com os pais para compreender que decepcioná-los é muito ruim a ponto de moldar suas condutas, mas não a ponto de ameaçar esse vínculo. Isso, se continuarmos a usar a teoria de Erikson, é possível porque a fase anterior, do nascimento aos 18 meses, é marcada pelo conflito confiança básica versus desconfiança. Ou seja, garantindo que essa primeira fase seja bem resolvida, e que a criança se sinta confiante, amada e protegida pelos pais, ela pode depois ser exposta a um conflito moral como sentir-se envergonhada por uma má conduta sem que isso se torne traumático. É incrível, mas uma criança de dois anos, bem amada e bem cuidada, já é capaz de começar a desenvolver uma percepção de si mesma como um ser moral autônomo, algo que muitos adultos parecem incapazes de fazer.

Esse é o valor, inestimável, de uma boa educação.