domingo, 17 de abril de 2011

A vida refletida

“A vida irrefletida
não vale a pena ser vivida”


A frase é de um texto de Platão, a Apologia. Trata-se do discurso que Sócrates teria feito em seu próprio julgamento, no qual viria a ser condenado à morte por envenenamento. Sócrates costumava andar pelas praças de Atenas interrogando, perturbando, como uma mosca chata, convidando as pessoas a refletir, a questionar. O Sócrates que conhecemos através de Platão é um herói, quase sobre-humano, que levava a luz da razão a quem vivia na escuridão. Foi assim também que Sócrates me foi apresentado, em minha infância. Um pouco através de meu pai, um pouco por Monteiro Lobato (em “História do mundo para crianças”), eu conheci essa figura trágica que terminou morta por levar vida a uma manada de atenienses zumbis que viviam essa vida morna, morta, a tal vida irrefletida.


Hoje sou psicoterapeuta. Ou seja, ganho a vida ajudando as pessoas a entenderem melhor as suas próprias. E como alguém que segue essa máxima socrática, reflito ainda hoje sobre tudo, inclusive sobre esse trabalho de incitar a reflexão. Olhando para a minha própria história, encontro aquele garoto de olhos atentos que se acostumou a interrogar todo acontecimento, a buscar o mecanismo ou princípio por trás de cada evento. E vejo também o preço que essa atitude cobra. Esse preço, hoje para mim tão óbvio, não foi claramente apontado por Sócrates, mas é igualmente óbvio em sua história e sua filosofia.
O preço é o distanciamento do mundo. A morte de Sócrates é mostra disso, condenado pela própria sociedade para cuja excelência ele tanto contribuiu, pois havia dela se alienado por sua própria filosofia. Essa busca incessante da verdade, da razão, dos princípios, levou Sócrates e sua filosofia a buscarem um outro mundo, o mundo das idéias, e não esse mundo, o nosso mundo. Sujo, nebuloso e apaixonante mundo.


Para mim, justamente por ter vivido sempre sob esse imperativo de refletir sobre a vida, foi muito difícil perceber e admitir que paguei também esse preço. Sou normalmente interpretado como avoado, arrogante ou até mal educado, por estar sempre ensimesmado, sempre “em outro lugar”. Facilmente me irrito com o que considero ignorância, ou, pior ainda, quando me deparo com uma atitude cada vez mais freqüente, que é a defesa da ignorância. Às vezes tenho a impressão de estar cercado de zumbis. As pessoas parecem que escorregam vida abaixo, repetindo os mesmos padrões, reagindo impensadamente da forma mais cômoda possível. Qualquer pergunta sobre um porquê, sobre um sentimento, uma razão ou princípio, é recebida com surpresa e com um olhar perplexo e vazio. É fácil dizer que estou certo porque “a vida irrefletida não vale a pena ser vivida”, mas enquanto os zumbis vão vivendo suas vidas, eu e toda a tradição filosófica originada com Sócrates fomos nos distanciando do mundo, alienando-nos da vida.


Só recentemente, poucos anos, percebi com pungência que esse preço é alto demais. Decidi que precisava correr atrás dessa ligação direta com o mundo e com a vida, mas sem abandonar esse questionamento constante que hoje é parte integrante de mim. Viciado que sou na razão e na lógica, busquei nos mais diversos sistemas filosóficos alguma resposta a esse problema. Comecei a esboçar algumas saídas, com a ajuda principalmente de Nietzsche e Espinosa, que me permitissem uma maior atenção à vida mesma, ao mundo real, e às relações reais. Talvez seja possível um resgate das emoções, das experiências puras do mundo, sem essa intermediação da razão, ou ao menos sem que a razão necessariamente submeta todo o resto. Mas é tão difícil! Há algo no ser humano que é pura energia, pura ação, intenção. Pura vontade! Algo por trás e anterior à consciência de si mesmo, anterior à linguagem. E tenho tentado incessantemente ter alguma apreensão desse “algo”. Mas qualquer apreensão já é linguagem. Qualquer vivência direta da vontade e da potência da vida que me acometa é quase que imediatamente transformada e submetida à razão na medida mesmo em que tento percebê-la. Sigo buscando essa vida, que não pode ser irrefletida, pois não sou mais capaz de enxergar no escuro, mas que não me aliene, que não me cobre o mundo. Que não me cegue.


Há dois dias atrás minha primeira filha nasceu. Ela é fruto de tudo o que sou, e muito mais do que isso, é fruto de toda a vida que eu levei e de todas as vidas que tocaram a minha. Em igual medida, é fruto da Mari, a vida que mais me tocou e mais me transformou. É fruto de nossa união, de nosso amor. Essa relação maravilhosa é que me mantém ligado, conectado a uma vida real, ao mundo real. Essa vida que construímos juntos, e agora a nossa filhinha, são a minha religião. Minha ligação direta com a essência brilhante da vida, com essa força potente da existência que alguns colocam em outro mundo e chamam de deus, e eu coloco nesse mundo e não tenho nome que sirva. Esse “algo” que tanto busco.
Com minha filha no colo, fiz o que todo pai faria. Fiquei olhando para ela com cara de bobo. Ela ainda de olhinhos fechados, fazia carinhas, trejeitinhos de bebê. Aos poucos começou a tentar abrir os olhos, ensaiava enxergar alguma coisa, mas com a luz logo os fechava, fazendo careta. Tentei cobrir a luz com minha mão, virar para o lado, ela sempre tentando ver, mas desistindo. Aquele esforço me conquistou, como tudo o que ela faz. Fui até uma área menos iluminada, protegi seu rostinho com meu corpo, e olhei longamente para as pálpebras fechadas que me encaravam.
Ela abriu os olhos, piscando, testando, e olhou para mim no escuro. Rapidamente, por um ou dois segundos no máximo, ela olhou diretamente para mim. Depois ficou passeando o olhar, com sua visão extremamente míope de recém-nascida, por tudo e nada ao mesmo tempo. Foi um olhar que nada viu, um olhar sem compreensão. Um olhar que recusou a luz da razão e só funcionou nas sombras. Um primeiro olhar que nada estudou, interpretou ou aprendeu. Foi apenas um olhar que conseguiu ser.


Mas foi nos fugidios olhos cinzas azulados de minha filha
que finalmente vi
a vida refletida.