quinta-feira, 26 de julho de 2012

Castigos, palmadas, e um pouco de moralismo

Nos últimos dias vi-me novamente empenhado em um debate com minha esposa sobre educação. Dessa vez não fomos inspirados por nenhuma reportagem, mas enfim, como pais de primeira viagem que somos, o assunto vive recorrendo. Desta vez o tema era o castigo físico como medida educativa.
Eu e minha mulher conversamos muito, tentando explorar o que nós mesmos pensamos sobre o assunto. Para ela, foi fácil afirmar que gostaria de educar nossa filha sem palmadas. Mas ela humildemente admitiu que nossas experiências até agora, com uma bebê de um ano, não nos permitem prever as situações mais extremas com que poderemos nos deparar, e exatamente como reagiríamos. Por exemplo, se uma criança de dois a três anos de repente sai correndo para o meio da rua. Nessa idade uma criança não é muito capaz de compreender a gravidade do que fez só por uma conversa. Haveria outra alternativa tão eficaz quanto uma palmada para deixar claro que ela nunca mais deveria fazer aquilo?

O caminho que percorremos para chegar a uma possível resposta mostrou-se uma boa oportunidade para exemplificar os dois instrumentos que considerei essenciais aos pais para uma boa educação no meu último texto: (1) Clareza dos seus valores morais e (2) Noções de desenvolvimento psicossocial infantil.

Comecemos então pela questão de valores. O que você pensa sobre a palmada? É certo, bom, ou ao menos justificável bater nos filhos no contexto educativo? Notem que aqui não estamos falando de agressão física gratuita, nem gravemente violenta, mas da famosa palmada educativa. E também não vale uma reposta do tipo "depende da situação", por que isso é óbvio, uma vez que ninguém advoga palmadas a torto e a direito por qualquer coisa. A questão é: existe alguma justificativa moral para a palmada em alguma situação?

Eu vou tentar chegar a uma resposta, mas será, é claro, a minha reposta. O objetivo deste texto, porém, não é dar receita de bolo, mas mostrar o valioso instrumento que é desenvolver a clareza de seus valores morais.

Para começar a pensar sobre valores, sugiro que façamos uma divisão bem básica entre duas visões éticas:
A primeira, conhecida por ética utilitarista, consiste na idéia de que nosso julgamento sobre o valor moral de uma ação depende das consequências dela. Ou seja, a palmada poderia ser justificada se ela resultar em algo bom. Quando perguntamos se a agressão física pode ou não resultar em um trauma para a criança, estamos pensando segundo essa ética utilitarista. Estamos pressupondo que se a palmada não trouxer consequências negativas maiores do que o benefício de ensinar um comportamento desejável, então ela pode ser empregada.
A outra forma básica de se pensar sobre valores é a ética deontológica. O nome difícil esconde uma idéia simples: trata-se de atrelar o valor moral de uma ação ao motivo dela, não importando a consequência. Ou, melhor dizendo, de julgar o caráter de uma ação por um princípio moral, uma espécie de regra sobre o que é certo ou errado independente do resultado desta ação. Este tipo de pensamento anda meio fora de moda. No mundo moderno olhamos com desconfiança para a idéia de um gabarito moral, de um princípio ético básico, porque vivemos em um mundo pluralista aberto a diferentes interpretações de valores.

E você, o que acha? Ao decidir se vale ou não lançar mão da palmada na educação de seus filhos, você acha que o faz por uma questão utilitarista (se faz mais bem ou mais mal), ou por uma questão de princípios?

As discussões que vemos a respeito desse tema costumam levar sempre em conta uma ótica utilitarista. Discute-se se a palmada vai causar traumas, se vai ensinar o uso da violência, ou se é, afinal, eficaz. Para alguns pais, porém, pode ser que não importe se é eficaz ou se traumatiza. Para alguns isso pode ser algo considerado simplesmente errado, por um valor moral.
Vivemos em uma sociedade avessa à discussão nestes termos. Achamos que apelar para um princípio moral pode parecer desrespeitoso, intrusivo. Em um debate público, seja em uma conversa entre amigos, fórum de internet ou programa de televisão, queremos sempre evitar parecer moralistas, e por isso imperam as discussões utilitaristas. Tem vantagem? É eficaz? Faz mal?

Talvez seja bom que isso funcione assim nos debate públicos, mas com certeza não é bom que isso funcione assim na sua casa, na sua vida pessoal, e na educação dos seus filhos. Para você e para sua família, deve valer aquilo que lhe faz sentido, e você deve considerar essas questões da forma que lhe parecer a mais correta. Se for a utilitarista, leve os dados sobre as consequências em conta e decida como educar. Agora, se você pensa de forma deontológica, leve as discussões públicas em conta, é claro, mas não tenha medo de validar os seus próprios princípios morais, e viver e educar seus filhos de acordo com eles.

Como eu resolvi a questão para mim? Bom, entre essas duas formas básicas de se pensar sobre valores há inúmeros tons de cinza, e ainda há outra formas, entre as quais se encontra a que eu mais me identifico. Mas, para tentar me ater a essas duas, eu aproximaria a minha forma de pensar à ética deontológica, pois há um certo princípio básico que norteia minhas decisões morais, na minha vida e na educação de minha filha. Esse princípio vem atrelado a uma idéia, ou ideal, de ser humano: acho que o ser humano é tão mais feliz, mais completo, e em certo sentido vive uma vida tão melhor quanto mais potência de ação ele tem. Acho que a palmada ensina que algo não deve ser feito em hipótese nenhuma, a ponto de justificar o uso de violência para coibir, efetivamente traçando um claro limite no repertório de ações da criança. Acho que outras formas de educar podem ensinar à criança que ela não deve decidir por certas atitudes, fornecendo parâmetros de ação, e não limites.

É claro que eu quero que minha filha aprenda a jamais correr para o meio da rua. O ponto é que eu vejo uma diferença entre uma criança, ou qualquer ser humano, que sinta que uma ação lhe é absolutamente proibida, e um ser humano que sinta que escolhe não realizar uma certa ação absolutamente. Veja que não se trata de uma diferença utilitarista, uma vez que o resultado de qualquer intervenção eficaz nesse caso é o mesmo: a criança não correrá para a rua. A diferença é que, por princípio, eu atribuo um valor moral mais alto a uma conduta que respeita ao máximo a potência de ação de cada indivíduo, que a uma que diminua essa potência.

Essa distinção entre limites e parâmetros pode parecer uma sutileza desprezível. Mas, para mim, a cada momento ao longo de toda a sua existência, quando um ser humano sente que uma ação está além de seus limites ele se entristece e se diminui como pessoa. E a cada momento que um ser humano decide que uma ação está descartada por não corresponder aos parâmetros que ele aprendeu a traçar para si mesmo como um ser moral, ele se reafirma, e é mais feliz. Por isso, para mim, essa distinção é fundamental. Para mim. Para você pode ser diferente, e isso não é nenhum problema. Como eu já disse antes, só você pode saber o que é importante na educação de seu filho, mas você tem que saber.

Agora, se eu continuar essa discussão assumindo que, por princípio, não vamos empregar a palmada, então como ensinar para uma criança de 3 anos, por exemplo, que ela não deve correr para a rua? Aqui entramos no segundo instrumento: as noções de desenvolvimento psicossocial infantil.

É comum ouvirmos que crianças, principalmente as pequenas, precisam de limites. A idéia é que enquanto elas ainda não têm a capacidade de desenvolver um senso moral autônomo, ou o discernimento para se comprometer com algumas condutas, a única coisa que pode fazê-las aprender o que é errado é isto ser apresentado como absolutamente proibido. E isso está certo em grande medida. Não dá para conversar com uma criança de três anos, como é possível fazer com um adolescente, para mostrar que uma conduta é possível, mas não correta. Crianças menores devem aprender simplesmente que algo não deve ser feito, e pronto. Será que ainda assim vale a distinção entre limite e parâmetro que usei para condenar a palmada? Se a criança é tão pequena que ainda não dá para apelar ao seu senso moral, então um castigo mais duro e a imposição de um limite, mesmo que violento, não é inevitável? Ou ainda, melhor dizendo, mesmo que a palmada não seja inevitável, mas será que ela é realmente diferente de qualquer outra forma de impor um limite, já que ele terá que ser coercivo de qualquer forma?

O que nos permite chegar a uma resposta a essa pergunta é esse segundo instrumento, o desenvolvimento infantil. Quando estudamos crianças, e como elas se desenvolvem, descobrimos coisas fascinantes. Descobrimos, por exemplo, que crianças têm, sim, um senso de certo e errado, um senso moral. Ele só é muito diferente, é claro, do que o de um adulto, mas ele está lá. Se um adulto pode decidir sobre o que é certo ou errado com base em complexos e abstratos parâmetros morais, e um adolescente pode ser ensinado a pensar moralmente por si próprio, uma criança de qualquer idade também pode, desde que compreendamos qual é a "linguagem moral" de que ela é capaz.

Há diversas teorias sobre o desenvolvimento infantil, e eu não tenho pudores em me apropriar daquela que me parece mais útil em determinado momento. Nesse caso, gostaria de usar a teoria de Erik Erikson, um estudioso de orientação psicanalítica que expandiu grandemente o trabalho de Freud sobre o tema. Erikson sugeriu que o desenvolvimento humano possa ser dividido em oito fases, e que cada uma delas se caracterizaria por nossos esforços para resolver um grande conflito. Por exemplo, para uma criança entre um ano e meio e três anos, o conflito é entre autonomia e vergonha. Ela sente que é capaz de fazer mais coisas sozinhas, aprendeu a andar por sua própria conta e quer explorar o mundo. O que a limita é o medo de se envergonhar ao fazer algo errado e decepcionar os pais. Nesse embrião de senso moral, bom é descobrir uma nova ação bem recebida, e mal é passar vergonha, por uma reprovação dos pais.

Ou seja, quem acha que pode conversar sem precisar bater em seu filho adolescente para educá-lo, também pode fazê-lo com seu filho de três anos. Basta usar o que ele entende por bom e mal. Ele pode desde muito cedo passar pela experiência de decidir por si mesmo que não deve correr para a rua, mas ele não decidirá corretamente porque é perigoso, ou porque é errado, mas porque seus pais se decepcionarão com ele. Ele também decidirá corretamente se aprender que o resultado dessa ação é levar uma palmada, mas aí ele não passará pela experiência de que foi ele que decidiu não fazer isso com base no seu senso moral. Passará apenas pela experiência de que não teve opção.

Essa idéia pode parecer meio estranha. Ao invés de palmadas, garantir que ele sinta vergonha do que fez? Será que isso é realmente melhor? Explorar a vergonha não pode ser ainda mais traumático, ou talvez até mais errado, do que uma palmadinha?

Bem, em primeiro lugar, a palmada também é muito vexatória. Mas mais do que isso, embora pareça estranho, evocar essa sensação de vergonha não é diferente de evocar qualquer outro parâmetro que se queira para justificar a moralidade de uma conduta. Ao longo do desenvolvimento vamos aprendendo a agregar outros parâmetros além da vergonha, como culpa, solidariedade, amor, respeito, justiça, e nosso senso moral vai ficando mais complexo. A própria vergonha nunca deixa de fazer parte dos parâmetros que nos movem agir da forma que achamos certa. Para uma criança de três anos, porém, ela é, talvez, o único parâmetro acessível. E ainda, se pensarmos bem, isso é o que acontece nessa mesma fase no treinamento de toalete. Você pode bater o papo cabeça que quiser para convencer seu filho a fazer suas necessidades na cadeirinha, mas a verdade é que a motivação que ele tem para obedecer é a vontade de corresponder à expectativa que você tem dele, e não se envergonhar ao decepcioná-lo.

É claro que explorar a vergonha não significa humilhar a criança. Trocar a agressão física pela verbal não resolve grande coisa. Uma criança nessa fase deve ter confiança suficiente no vinculo com os pais para compreender que decepcioná-los é muito ruim a ponto de moldar suas condutas, mas não a ponto de ameaçar esse vínculo. Isso, se continuarmos a usar a teoria de Erikson, é possível porque a fase anterior, do nascimento aos 18 meses, é marcada pelo conflito confiança básica versus desconfiança. Ou seja, garantindo que essa primeira fase seja bem resolvida, e que a criança se sinta confiante, amada e protegida pelos pais, ela pode depois ser exposta a um conflito moral como sentir-se envergonhada por uma má conduta sem que isso se torne traumático. É incrível, mas uma criança de dois anos, bem amada e bem cuidada, já é capaz de começar a desenvolver uma percepção de si mesma como um ser moral autônomo, algo que muitos adultos parecem incapazes de fazer.

Esse é o valor, inestimável, de uma boa educação.