domingo, 9 de setembro de 2012

Educação e a Ética da Virtude

Recentemente eu me meti a escrever dois textos sobre educação, tentando dar forma a algumas reflexões que venho tendo como pai de primeira viagem. Embora tenham sido, realmente, sobre educação, eles também eram textos sobre um outro assunto, que ficou subjacente, e que é realmente o tema que mais tem me interessado, tanto pessoal quanto profissionalmente: ambos eram textos sobre ética. Mais especificamente, sobre uma forma de se pensar a ética que tem sido chamada de ética da virtude.
 
No último texto, sobre palmadas, eu falei de duas formas de se julgar o valor moral de uma ação. A forma utilitarista, ou consequencialista, vai julgar se a palmada é boa ou não com base nas consequências que ela gera. E a forma deontológica vai se preocupar com algum princípio moral, uma regra de conduta. Por praticamente dois séculos a discussão moral foi polarizada por essas duas vertentes, porque elas permitem argumentos bem objetivos. O utilitarismo chega a quantificar matematicamente, fazer gráficos, que medem as consequências positivas versus as negativas e com isso aprova ou não a legitimidade moral de uma conduta.
 
Mas que outra opção temos, além de avaliar a moral por regras ou por consequências? A ética da virtude irá propor uma terceira via, ao dizer que devemos avaliar o caráter de uma ação pelo caráter do agente. Uma boa ação é aquela praticada por um homem bom. Uma ação justa é aquela praticada por um homem justo. Parece estranho? Parece um pouco. Mas vejamos o que isso significa na prática.

 
 Eu apanhei de meus pais. Eu e minhas irmãs, quando nos comportávamos mal, éramos devidamente colocados de bruços sobre as pernas de minha mãe e recebíamos sonoras chineladas na bunda. Éramos três, e nos momentos de maior agitação ou confusão, também levávamos boas palmadas menos sistemáticas. Eu me lembro que estava já na faculdade quando ouvi pela primeira vez uma discussão mais formal sobre uma possível lei para abolir as palmadas e achei aquilo um absurdo. Por que proibir? Eu apanhei minha infância toda e nunca senti que aquilo tivesse sido um problema, nem remotamente. Pelo contrário, tive sempre uma impressão tão boa de meus pais, de minha família e da minha infância, que a idéia de que a forma como eu fui criado pudesse ser considerada ilegal me pareceu uma afronta. Outras pessoas, porém, nunca apanharam de seus pais e consideravam o ato alguma coisa de hediondo. E outras ainda, apanharam de seus pais e sentiam-se traumatizadas por isso, ou ao menos prefeririam que tivessem sido tratadas de outra maneira. Quando a discussão vai a público, e pretende-se formular uma lei, ela passa a ser colocada de forma objetiva. Queremos um parâmetro claro, científico, que diga o que é certo ou errado. Queremos avaliar a ação por alguma regra clara, ou por consequências mensuráveis. Mas algumas questões são propriamente questões morais, e deveriam ser colocadas em termos de valores, não de fatos. Como é possível que eu tenha apanhado de meus pais e me sinta tão bem educado por eles, enquanto outros se sentem tão mal por isso? Como achar a regra clara ou a medida absoluta das consequências, que compatibilize vivências tão diferentes?
 
Segundo a ética da virtude, uma boa educação é aquela levada a cabo por um pai ou uma mãe que sejam bons educadores, ou seja, que tenham a virtude de saber educar. Bater nos filhos pode, ou não, fazer parte de uma boa educação, mas isso não depende de uma regra absoluta, nem de consequências mensuráveis. Depende do caráter do educador. Bons educadores, pais virtuosos, não se submetem a uma regra maior que eles mesmos, nem ficam avaliando consequências, embora possam fazê-lo quando lhes parecer apropriado. Pais virtuosos o são em todas as suas ações, pois essa virtude impregna-lhes o caráter. Eles se interessam por educação, e emocionam-se ao educar seus filhos. Reconhecem essa virtude em outras crianças e em outros pais, e esse reconhecimento é bom, é alegre, une-os em torno de um mesmo ideal, mesmo que discordem em alguns valores individuais. Prestam atenção em educação, em seus filhos, e em seus valores. Vêem-se naturalmente interessados em reportagens, livros ou comentários que ouçam a respeito do tema. Seus ânimos, suas disposições, voltam-se para esses temas como uma pedra se volta para o chão. Percebem quando agem bem, pois se sentem tomados de alegria, e não há lei, regra ou medida no mundo que possa fazê-los se desviar daquilo que sentem, com todas as forças, que é a ação em conformidade com a virtude, que é a boa educação.
 
 
Mas como saber? Como ser um bom educador? Bem, ninguém nasce virtuoso. Na forma mais clássica de ética da virtude, que é basicamente a ética de Aristóteles, existe o conceito, do grego, de "phronesis", uma espécie de sabedoria prática, a capacidade de reconhecer em cada situação qual a maneira correta de agir. Esta sabedoria se adquire, se desenvolve na prática, através da experiência e da convivência com a sociedade. Pensar por esse molde da ética da virtude não é uma espécie de garantia contra o erro. Se a boa educação é aquela provida por um bom educador, poder-se-ia entender que qualquer coisa que este fizer será sempre acertada. Não é assim. A idéia é que exista uma forma ideal da boa educação, e o bom educador é aquele se pauta por ela. Ele pode errar. Talvez a palmada não devesse fazer parte de uma boa educação, mas não é por bater ou não que se define o caráter do bom educador. Talvez haja momentos em que bater seja adequado, e momentos em que não, mas a angústia de saber distingui-los não deveria ser resolvida por uma regra pré-definida, uma receita de bolo, ou por qualquer critério que tire da jogada aquele que é o critério mais importante, mais fundamental: a sabedoria e a disposição para a virtude do educador.

 
 A ética da virtude vem experimentando um ressurgimento nos últimos cinqüenta anos, mais ou menos. Este ocorreu em grande parte como uma reação à forma cada vez mais fria, rígida, objetiva e pretensamente científica que a filosofia moral vinha colocando seus problemas. Essa reação vem ganhando força e influência, mas ainda é relativamente recente. Muitas particularidades desse pensamento ainda não foram suficientemente aprofundadas, e alguns de seus problemas ainda não foram satisfatoriamente endereçados.

 
Após séculos relegadas a segundo plano, temos dificuldade para encontrar um espaço para as virtudes em nossa sensibilidade contemporânea. Devemos criar nossos filhos para serem virtuosos, ou seja, segundo essa ótica, para terem uma disposição para agir bem e uma sabedoria prática para nortear suas ações. Mas que virtudes devemos ensinar? Honestidade? Lealdade? Temperança? Fraternidade? Coragem? São muitas as virtudes clássicas, mas sabemos como elas entram e saem de moda, tornam-se mais ou menos relevantes, e é difícil assumi-las como verdades atemporais. Por exemplo, há cinquenta anos atrás um funcionário leal com décadas de empresa era valorizado, enquanto hoje um jovem que passe dois anos em uma mesma empresa começa a parecer um acomodado. Lealdade e experiência eram virtudes muito importantes, mas hoje, agilidade e ambição são mais. No Texas, a coragem para defender sua família de um assaltante com uma arma é uma virtude. No Brasil, é uma idiotice. Aquilo que aprendemos como virtude e sabedoria prática muda demais, com o tempo e a sociedade em questão, e foi esse exatamente o apelo que levou o utilitarismo a se tornar tão influente, por propor uma forma objetiva de distinguir certo e errado.

 
 Ainda não há uma resposta exata para essas questões. Não temos como saber quais virtudes devemos ensinar, quais valores especificamente devemos sempre defender. Mas também não podemos nos deixar cair em um relativismo total em que o bom é aquilo que a cada um lhe parece. A palavra grega para virtude é "areté", que quer dizer, mais precisamente, excelência. A questão que se põe, para a educação e para a ética da virtude, é: o que constitui a excelência do ser humano? O que significa viver de acordo com a virtude, ou seja, viver de forma a expressar ao máximo a essência do homem e da humanidade? Pode ser que não conheçamos uma resposta absoluta para essa questão, pode ser que ela não exista. Mas podemos sentir, em nós, e em nossa disposição para a vida prática, algo que reconhecemos como bom. E não há nada mais importante que possamos fazer por nossos filhos que ensinar isso a eles. Torná-los tão capazes quanto nós, mesmo que sejamos ainda tão incapazes, de perseguir a virtude.

 
Por isso eu disse no primeiro texto: para educar bem, eduque-se. Torne-se uma pessoa melhor, mais sábia e mais virtuosa. Preocupe-se em desenvolver essa virtude, essa disposição de ânimo, de inspirar-se pela educação. Você vai perceber que educar é um processo contínuo e bilateral, pois você tem tanto a aprender quanto seu filho, e ambos estão, essencialmente, aprendendo a mesma coisa. Nada se compara à alegria de descobrir-se cada vez menos um professor, e cada vez mais um companheiro de seu filho nessa aventura de se tornar um ser humano melhor.