quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Filosofia Joyceana - Experimento de fluxo da consciência sobre uma teoria da mente

Pensar sobre meus pensamentos é uma atividade complexa e cheia de consequências porque ela é infinitamente redundante. Eu estou escrevendo essas linhas exatamente como as estou pensando mas isso obviamente não acontece assim. Não é nunca exatamente como eu as estou pensando, por mais que eu me esforce, porque eu estou sempre pensando sobre o que estou pensando, e penso mais rápido do que escrevo então estou sempre voltando um pouco e além de voltar um pouco também projeto um pouco, projeto um bom tanto na verdade porque algum conteúdo imagético de tudo o que será escrito pensado já toma alguma forma mesmo enquanto estou no presente escrevendo este passado. E agora parei para pensar no que escrever a seguir, então vê, já não é exatamente o que eu penso. Estou consciente de que estou pensando o que estou pensando, ou digamos, eu posso afirmar que acredito que estou pensando o que estou pensando. E acredito que estou pensando que estou pensando o que estou pensando e posso afirmar isso indefinidamente. Acho que tem duas saídas para isso. Uma é postular que apenas essa afirmação de que posso pensar sobre meus pensamentos é o que me faz consciente (Rosenthal) ou que se todas as afirmações secundárias, terciárias, e adiante, sobre pensar o que estou pensando parecem redundantes, pouco reais, então talvez a primária também seja. Talvez afirmar que eu sei que estou pensando seja irreal, apenas redundância, e que ser consciente é simplesmente ter esse fluxo de pensamentos, seja qual for seu conteúdo, sobre o mundo ou sobre meus pensamentos, representação ou reflexão, tudo é apenas o meu fluxo de consciência, como na "joycean machine" de Daniel Dennett: a consciência pode ser apenas um fluxo incessante de perceptos, como o estilo literário explorado por Joyce, Svevo e Faulkner, por exemplo. Ser consciente de mim mesmo pode não significar nada?
O filósofo australiano David Chalmers cunhou o termo "the hard problem". Australiano, parece tão estranho um filósofo australiano, e cheque-o no Google images, com seu cabelo de roqueiro anos 80 e jaqueta de couro, eu posso vê-lo saindo da universidade em uma harley, ou matutando fazendo filosofia de poltrona em uma poltrona impregnada de cheiro de cânhamo queimado, não ajuda nada quando temos que acreditar em sua espécie de dualismo, mas enfim. Hard problem é afirmar que resolver todos os problemas funcionais não resolve o problema da consciência, seja, descrever um modelo detalhado e neuroanatomicofisiologicofuncionalmente perfeito ainda assim não daria conta de explicar como é ser eu. Pode explicar tudo o que eu faço, mas não como é ser eu. Da mesma forma que conhecer exata e perfeitamente o funcionamento sensorial de um morcego não me ajudará jamais a saber como é ser um morcego. Ou como a pobre Mary, provavelmente a segunda Mary fictícia mais comentada do mundo, a fisiologista de cores que sabe tudo o que há para saber sobre a física e a neurofisiologia da percepção de cores mas foi criada desde a infância em um laboratório completamente em branco e preto e quando exposta ao vermelho pela primeira vez, será que ela aprende algo novo? A experiência de como é ver vermelho será algo novo, ou ela já sabe tudo o que há para saber sobre o vermelho? Se houver algo novo, que raios? The hard problem. Chalmers acha que saber como é ser algo ("qualia" é o nome que os filósofos dão para saber como é ser algo), é algo. Existe. É diferente da soma das funções. Diz que defende um certo dualismo, "property dualism", como em: existe uma só coisa mas uma propriedade dessa coisa é matéria e o mundo físico e outra é mente e consciência. Se não fosse a cabeleira... Mas quem surpreendentemente defende um "property dualism" e não tem cabeleira do Scorpions é Cristof Koch, e ele colaborou com Watson Crick que não se chamava Watson, pobre Francis, mas é aquele Crick mesmo, o do Watson, como dizem, você só pode se dedicar academicamente ao problema da consciência se você tiver cabelos brancos e um prêmio Nobel. Mas Crick e Koch colaboraram durante décadas como talvez os principais fisicalistas, investigadores do mínimo substrato neural da consciência, procurando a pineal cartesiana dos tempos modernos (Descartes achava que a glândula pineal fazia a ponte entre a mente pensamento e o cérebro matéria), mas de modo a explicar tudo materialmente é claro. Materialismo, vamos lá! Mas aí me vem Koch em seu último livro dizer que dualismo rocks, mesmo sem cabeleira. Segundo ele a consciência é uma propriedade da matéria, como carga elétrica. Ok, nem é tão ruim, quer dizer, o que significa dizer que elétron tem spin? Que quarks têm cor? Nada, além de dizer: atribuamos uma propriedade x a esta partícula para diferenciar um estado 1 de outro -1 e olha só! agora nosso modelo matemático funciona. Claro, o modelo funcionar quer dizer ser extremamente preditivo em um nível estatisticamente embasbacante então isso deve representar algo sobre o mundo real, físico, afinal, o modelo é perfeito e tal, mas ainda assim, quarks não têm cor. E talvez matéria não tenha consciência. Mas se o modelo que usa essa propriedade fosse preditivo de alguma coisa, aí iríamos achar que toda matéria tem consciência como achamos que tem carga. Koch acha que é, usando a teoria de informação integrada de Giulio Tononi, possível estabelecer um modelo matemático preditivo do grau de consciência de um sistema, mas acho que ele ainda não provou nada, até porque, o sistema de informação com mais capacidade de integração que conhecemos sem contar os cérebros de animais desenvolvidos seria a internet e, segundo Koch, ele acha que ela ainda não é consciente, ainda. E também, se fosse, como diabos saberíamos? Eu não sei se ninguém mais é consciente além de mim, a menos que eu considere consciente tudo o que se comporta como se fosse, quando visto de um ponto de vista externo, o meu, e aí não haveria o Hard Problem porque então bastaria explicar todo esse comportamento "como se fosse" e eu não precisaria achar que saber como é ser eu tenha qualquer relevância para o problema da consciência. E se eu puder fazer isso, aí eu fico com o materialismo mesmo, muito obrigado. Mas Koch acha que existe algo que é como é ser um cachorro, como é ser um morcego, e talvez, como é ser a internet, e, em princípio, como é ser qualquer coisa material porque matéria tem essa propriedade, bastando estar organizada em um sistema integrado de informações para saber como é ser matéria. É um "property dualism" e um panpsiquismo, é praticamente Spinoza back with a vengeance à luz da física moderna.
Qualquer matéria é informação, é verdade, não é? Quer dizer, qualquer diminuição de incerteza, determinação, diminuição de entropia, é definição de informação, na verdade isso é mesmo definição de informação para alguém, que não lembro quem, mas é uma definição formal. Faz sentido, uma partícula informa que existe, no mínimo, mas dizem que informa até se tem spin -1 ou 1, ou se tem cor, ou se é uma corda ou um laço (string vs loop theories), e toda matéria é diminuição de incerteza, de entropia, é um estado qualquer minimamente organizado que pode ser irreversivelmente desfeito. Havendo só energia em fluxo, à máxima velocidade, não há matéria, não há informação, não há espaço e não há tempo. Matéria é desaceleração, é resistência a movimento, F=ma, é paragem (Bergson), é dobra, reentrância, ondulação, é uma ranhura no fluxo incessante de energia do universo e se essa coisinha puder perdurar um pouquinho, só um pouco, um instante, umas centenas de milhõezinhos de anos se tanto, só o tempo suficiente para se organizar em um sistema que integre suas informações, que retenha um pouco de sua história memória, talvez ela possa saber como é que é ser ela.
Mas o hard problem não é o meu maior problema, eu consigo imaginar sem dificuldades uma mente materialista que saiba tudo o que é possível saber sobre como é ser ela sem que isso seja uma outra coisa além da soma de todas as funções do cérebro materialista que a abriga. O que me intriga é essa regressão infinita a alguma instância imaterial que é quem toma decisões. Eu penso meus pensamentos, que são só matéria em movimento dentro do meu cérebro, mas quem é que sabe que eu penso? Quem entende o que eu penso, decide o que eu penso e formula o que eu digo ou escrevo? Todo o processo pelo qual eu penso em algo enquanto estou escrevendo acontece enquanto meu cérebro cuida de todos os movimentos materiais de informações entre neurônios para que eu escreva, meu córtex frontal elabora um plano motor, meu giro pré-central o executa, em perfeita sincronia com receptores proprioceptivos nos meus dedos, mãos, braços, monitorados pelo cerebelo, toda essa orquestra acontece porque eu pensei no que eu queria escrever. Mas um pensamento não pode mover meu cérebro, então um pensamento não pode começar tudo isso, a menos que um pensamento seja só movimento no meu cérebro porque um movimento de matéria pode gerar outro movimento de matéria. Mas se movimento gera movimento, e todo pensamento é matéria, quem começou o primeiro pensamento de uma certa cadeia? Quem foi que decidiu mover meu braço? Eu pensei e ele moveu, mas o pensamento que deu a ordem tem que ser matéria, e antes dele matéria, e então foi um movimento (Bergson chamava de vibração), então foi uma vibração no meu cérebro que começou tudo, e então não fui eu, a menos que eu seja só uma vibração no meu cérebro. Ficar só com o materialismo, que parece tão mais óbvio, requer mudanças radicais em como eu penso como é que é ser eu. Seria preciso imaginar que meu cérebro "pensa", o tempo todo, sem parar, um pandemônio (palavra de fato usada por Dennett) de pensamentos entendidos como vibrações, em resposta aos milhões de vibrações da matéria do mundo físico afetando meus sentidos, vibrando meu cérebro e gerando movimentos, um mar de vibrações que vão competir, moduladas por contexto e mecanismos de adaptação ao meio orientados a algum objetivo todo ele mecanicamente biologicamente determinado, todo esse maremoto afunilado e transformado em uma espécie de fluxo, meu fluxo, o fluxo que sou eu, produto da Joycean Machine. Fluxo de consciência. Parece que volta para o tal fluxo de energia incessantemente propagado desde o Big Bang, desacelerado nessa vibração que é matéria, que quer manter-se, resistir à tendência entrópica de se dissolver, quer continuar existindo e impressionando-se por outras vibrações, companheiras nessa condição de absoluta aberração estatística do universo que é todo estado anti-entrópico, como todo ser vivo. Perceber que somos fluxo é a base para uma teoria da mente, mas também de uma ética. Sistematizá-la, porém, não é trabalho para um exercício de fluxo.