sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O que aprendi sobre o amor desde o nascimento de minha filha.


Ninguém sabe o que diz quando diz “amo”.


É fabuloso observar como bebês aprendem a falar. Como se dá? Ora, há no bebê um limite do que ele pode, e seu desenvolvimento é a constante expansão desse limite. O que força esse limite? Vontade. Ele tem certa volição, e recruta o máximo daquilo que pode, o tempo todo, para esse fim. Ele fala a partir do momento em que pode, e então o fará sempre. Nunca fala, portanto, porque quer falar. Fala porque tem alguma vontade, e faz tudo o que pode para realizar seu intento, inclusive falar, quando fazê-lo passa a fazer parte daquilo que lhe é possível.

Isso me pareceu tão surpreendente observando Helena: é que a linguagem, quando nasce, não é referencial. Ela não falava porque queria dizer aquilo que falava, mas porque podia falar aquilo, para realizar o que queria. Falar era parte do esforço de realizar sua vontade.

Nesses primórdios da vida intelectual, símbolos, hábitos, aproximações, são tudo o que há. Eventualmente, a fala passava a ser associada, por contingência, por semelhança, por indexação, à coisa referida. Foi fácil ver isso acontecendo, aos poucos, em relação primeiro às coisas mais concretas — brinquedos, cores, pessoas —, e depois às coisas menos concretas — maior, menor, alegre, triste. Essencialmente, nada muda, é tudo associação e hábito. No limite, o sentido de “triste” será sempre “aquilo que se diz quando [tal e tal situação]”. Mas aos poucos vai acontecendo a meta linguagem do entendimento, e ela poderá falar sobre o que é “triste”. Ela ainda não pode, mesmo que já empregue o termo perfeitamente.

E amor? Ela já fala “te amo”, quase que exclusivamente quando solicitada, ou devolvendo a declaração. Mas em nenhuma de suas falas o caráter contingencial, mecânico, não referencial é tão claro quanto nesta. É fácil ter a impressão de que ela compreende o que diz em algum nível superior, quando ela diz qualquer coisa, menos “te amo”. O que é “te amo”? É “aquilo se diz em resposta a ‘te amo’”. É tão óbvio, que ela não sabe o que diz.

E, pensando bem, quando é que nós, adultos, vamos desenvolver a meta linguagem do entendimento e saber dizer o que é “amo”? Veja que não se trata nem da dificuldade de definir o que é “amor”. Ponha “amor” na categoria dos transcendentes. Das ideias confusas que temos de propor quando ultrapassamos nossa capacidade de dar conta das instâncias de sentir que amamos, e temos então de inventar “O Amor”. Que seja, nem precisa dessa polêmica. Esqueça o “amor” e veja se compreende o que é “amo”. Sabemos tão pouco! Sabemos mais, ou menos, que uma criança de dois anos?

Há um sentido em que, talvez, a criança esteja mais próxima de entender o que é “amo” que nós, adultos. Ninguém ama se não amar alguma coisa, mas a experiência de sentir que ama é diferente do amar alguma coisa. Amar é uma experiência não referencial, e talvez haja na incompletude da linguagem infantil, na sua pureza não referencial, um sentido maior de “amo” que aquele que, adultos, somos capazes de inferir.

“Eu amo”, enquanto sentimento, talvez possa ser claro e unívoco. Mas será sempre um símbolo, confuso e equívoco, quando proferido.

Amar parece ser sempre um reconhecimento.


É duro admitir, mas, é logicamente impossível amar Helena antes de ela ser Helena. Que é esse amor que se tem por filhos antes de eles existirem? É fácil afirmar que não há amor na vontade de ter um filho, na decisão de ter um filho, na expectativa de ter um filho, quando ele ainda é só um abstrato. É fácil ver, mas não é indiscutível.

Mas vai ficando confuso saber se é ou não amor o que se sente pelo feto. Onde traçar a linha? Em certos aspectos, é uma discussão parecida à polêmica do aborto. A partir de qual momento há algo que pode ser amado? Pode-se amar o teste positivo? A imagem do ultrassom? O peso na barriga? O chute? O berro ao nascer? O primeiro colo? O primeiro sorriso reflexo? Cada um vai começar a responder sim em diferentes pontos dessa sequência de perguntas. Mas, no fundo, enquanto o filho ainda não interage, não responde de nenhuma maneira particular, não se distingue através de alguma individualidade, como é possível dizer que é a ele, especificamente, que se ama?

Embora nunca haja um momento definido em que um filho passe a ser um indivíduo, sem dúvida que alguma transformação se opera. E é um processo longo, que dura talvez a vida inteira, esse de se tornar um indivíduo. Haveria uma correspondente transformação do amor que se sente? Vai-se experimentando um amor diferente, conforme deixa de ser um amor genérico para ser um amor individual?

Talvez. São perguntas difíceis. Mas o que me interessa, o que acho que se pode dizer que sabemos, na medida em que é o que experimentamos, é que muito do que se chama amor por um filho é algo que se carrega desde antes de haver, propriamente, um filho. Neste sentido, o amor não depende tanto do que se descobre sobre aquele ser em particular, mas do que se reconhece.

Amar verdadeiramente é uma experiência de comunhão.


Falar em amor como um reconhecimento parece ser egoísta. É como se só fosse possível amar a si mesmo — o que se vê, projeta, encontra no outro de semelhante a si.

Mas como poderia ser diferente? E porque isso haveria de diminuir, de qualquer forma, o valor que se atribui à experiência de amar? Quer se propor um amor que una as pessoas, que rompa barreiras, que celebre as diferenças. Isso é o que se aprende na escola, na televisão, nos romances. Mas quero falar do que aprendi com minha filha. Aos dois anos ela não sabe o que é “amar a humanidade”. Aos dois anos ela é uma máquina de egoísmos. Poderia ela me ensinar algo sobre o amor? Só ela pôde.

Aprendi que não sabemos o que é o amor. Mal conseguimos saber o que é amar, o que é dizer “amo”. É difícil, confuso, intermediado por associações e hábitos.

Aprendi que falamos porque podemos. Somos afetados pelas coisas, reagimos a elas, somos de alguma forma direcionados por essa afecções, e falamos como parte desse processo de agir em direção à vontade. Só temos alguma compreensão das coisas na medida em que podemos falar sobre o que falamos delas. O animal racional vai assim desenvolvendo a razão, criando discursos, contando histórias, e tornando-se um indivíduo. Quanto mais indivíduo, mais maduro, mais intermediado por signos, por linguagem, por associações e hábitos.

É uma faculdade incrível, valiosa, útil — a razão. Nasce dos encontros, dos contatos com as coisas do mundo, e vai estabelecendo uma compreensão dessas relações, que dá sentido ao fluxo das experiências. Mas só a partir dessa razão construída é que se pode acusar de egoísmo que se ame o que há de comum. É um fetichismo do ego, que dá tal valor ao indivíduo que se sente envergonhado de amá-lo. Interessante. É tão fundamental que se invente um “Eu”, em oposição ao mundo, que reconhecê-lo no mundo parece ruim.

Uma criança sabe o que é bom. Justamente porque ainda não sabe o que é “O Amor”, nem “O Bem”, nem “O Mal”, é que ela sabe tão bem o que é “amo”, “bom”, e “mau”. Eu tenho uma intensa experiência do amor de minha filha em diversos momentos. Aqueles em que ela diz “te amo”, normalmente não estão entre eles. Talvez por isso seja tão mais difícil desenvolver a meta linguagem do entendimento para o amor que para outros sentimentos. É mais fácil aprender a discursar sobre o que é “triste” ou “alegre” que sobre o que é “amo”. Porque aos poucos vai-se associando o ato de discurso “triste” com os maus encontros, e o ato de discurso “alegre” com os bons encontros. Já o ato de discurso “amo”, por algum motivo, vai ter que ser submetido ao escrutínio das virtudes, do mérito, para saber se é puro, altruísta, desinteressado o suficiente para ser digno de ser chamado “Amor”. Uma criança sabe que só o que advém do desinteresse é a falta de afeto. Amar é reconhecer, ressoar, compor.

O importante não é como se deve amar, mas como se pode amar. Não se haveria de ensinar para as crianças que deve-se amar isso ou aquilo, dessa forma ou de outra. Mas que se pode amar. Que o segredo para uma boa vida, para ser uma boa pessoa, para não ser egoísta, nem mesquinha, nem preconceituosa, é a capacidade para o afeto (a afetividade). Quando mais capacidade para o amor, mais abertura para o mundo, mais diferentes formas de se reconhecer.

Amar verdadeiramente é a extraordinária experiência do comum.





terça-feira, 14 de maio de 2013

Três tigres tristes

Descobri ontem na tirinha do Calvin no Estadão que Augusto de Campos havia vertido a poesia de Blake sobre o animal preferido de qualquer pessoa com olhos e algum senso de aventura. Desde que li a versão de Augusto de Campos, não consegui tirar da cabeça a vontade de fazer uma também. A minha ficou menos reinventada, amadora é claro, quadradinha e conformada com a original, mas também tem meu humilde twist. Segue minha pobre tentativa, seguida da original e da versão do mestre.

Tigre, tigre, incandescente,
Brilha a floresta dormente.
Que espécie imortal de agente
Talhou tão terrível simetria?

Quão extremo e distante o seio
Donde o fogo de teus olhos veio?
Que asas proveram-lhe ar?
Que mão pôs tal chama a queimar?

E quem combina força e arte
Para torcer de teu peito a parte
Que ruge, que soa, que bate?
Que mão, que pé não se abate?

Que martelo? Que corrente?
Que fornalha fez tua mente?
Que bigorna? Qual ardor
Suporta este terror?

Quando cada estrela chorar sua lança
Privando os céus de esperança
Estará Ele a sorrir ao ver?
Pôde quem fez o cordeiro te fazer?

Tigre, tigre, incandescente,
Brilha a floresta dormente.
Que espécie imortal de agente
Talhou tão terrível simetria?



William Blake:

Tiger, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies

Burnt the fire of thine eyes?

On what wings dare he aspire?

What the hand dare seize the fire?


And what shoulder and what art

Could twist the sinews of thy heart?

And when thy heart began to beat,

What dread hand and what dread feet?


What the hammer? what the chain?

In what furnace was thy brain?

What the anvil? What dread grasp

Dare its deadly terrors clasp?


When the stars threw down their spears,

And water’d heaven with their tears,

Did He smile His work to see?

Did He who made the lamb make thee?


Tiger, tiger, burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?



Augusto de Campos:

Tigre, Tigre! Brilho brasa
que a furna noturna abrasa
que olho ou mão araria
tua feroz simetria?

Em que céu se foi forjar

o fogo do teu olhar?

Em que asas veio a chama?

Que mão colheu esta flama?


Que força fez retorcer

em nervos todo teu ser?

E o som do teu coração

de aço, que cor, que ação?


Teu cérebro, quem o malha?

Que martelo, que fornalha o moldou?

Que mão, que garra seu terror mortal amarra?


Quando as lanças das estrelas cortaram os céus,

ao vê-las, quem as fez sorriu talvez?

Quem fez o cordeiro te fez?


Tigre, Tigre! Brilho brasa
que a furna noturna abrasa,
que olho ou mão araria
tua feroz simetria?




sexta-feira, 22 de março de 2013

Notas de Aula: Ciência e subjetividade - a evolução do pensamento científico


1.    Status Epistemológico

A noção de status Epistemológico é em si uma noção subjetiva. Trata-se da experiência de certa forma de crença que se chama científica. O que chamo de "forma de crença" é apenas uma maneira de me referir à experiência subjetiva de acreditar em algo. Por exemplo, alguém pode acreditar em um fato científico, como a lei da gravitação universal e ao mesmo tempo acreditar em Deus, reconhecendo que são duas formas diferentes de se acreditar, que constituem diferentes maneiras de propor a realidade de um dado. Da mesma forma, alguém pode emitir opiniões e acreditar nelas, por exemplo, ao afirmar: "é fato que o mar é bonito", mas saberá reconhecer que acredita nisso de forma diferente da qual acredita em Deus, ou na lei da gravitação universal. Aqui não se trata de definir qual crença é mais forte, mais valiosa, ou mais justificada, apenas notar que são formas diferentes de crença. O dado que se diz científico goza, assim, de um status particular, característico. Os dados em que acreditamos por serem ditos científicos passam a constituir uma forma específica de conhecimento, que podemos diferenciar de outras coisas que acreditamos conhecer.

2. A disputa por status

Enquanto a "forma de crença" é algo estritamente subjetivo, o status epistemológico de um dado científico pode ser disputado em termos objetivos. Disciplinas que clamam para si um estatuto de ciência querem afirmar que os dados que geram podem gozar deste status. Cientistas gostariam de poder dizer que a decisão sobre quais tipos de dados gozam deste status e quais não depende apenas da própria empreitada científica, da aplicação rigorosa de um método. Mas efetivamente isso não é possível. Essa é uma discussão extra científica que envolve desde debates sobre quão restritivo é o método, até debates políticos. Por exemplo, a psicologia pode submeter-se ao método e tratar apenas dos fenômenos observáveis objetivos, ou pode propor flexibilizações do método que possibilitem gerar dados sobre fenômenos subjetivos, e ainda assim pleitear este status epistemológico. Ou, o CFM pode reconhecer a homeopatia como especialidade médica, efetivamente concedendo-lha este status por decreto. É claro, status epistemológico continua sendo essencialmente uma experiência subjetiva, de modo que alguns serão convencidos por decretos ou por acomodações metodológicas, enquanto outros não, dando origem a acalorados debates.

3. O plano da aula

O objetivo da aula será ilustrar esta questão, e instrumentalizar o aluno para tais debates, através de um rápido e, infelizmente, superficial sobrevôo pela história da ciência, para apresentar um recorte, uma possível narrativa dentre as várias que se poderia construir sobre o tema, de como a ciência que conhecemos hoje aconteceu de ser como ela é.

4. Primeiro momento: a origem grega

É uma tradicional convenção da cultura ocidental colocar o nascimento da ciência na Grécia antiga, mais especificamente entre os filósofos conhecidos como físicos jônicos. Ali surgiu a primeira física, entendida como um discurso a respeito da constituição básica, essencial, da natureza. Tales, o primeiro filósofo e primeiro físico de que temos conhecimento, afirmava que a água era o elemento básico constituinte da vida. Alguns argumentos de Tales: (1) as margens do Nilo tornam-se férteis após serem inundadas; (2) as coisas naturais têm tanto mais vida, são tão mais animadas, quanto mais úmidas (compare uma pedra, uma árvore e um cachorro, por exemplo), e (3) tudo o que é vivo seca quando morre. Mesmo que a conclusão a que Tales chegou a partir desses argumentos seja falsa, este é um pensamento que se utiliza da razão para explicar a natureza a partir da natureza, evitando explicações sobrenaturais. No pensamento mágico, mitológico, que imperava até então, a fertilidade das margens do Nilo seria explicada por alguma divindade, um espírito, que vivesse no rio, e que daria a graça da fertilidade conforme tivesse ou não sido agradado pelos homens. Tales inaugura o pensamento natural, imanente, racional, em oposição ao pensamento mágico.

Polaridade: pensamento racional X pensamento mágico (mito).

5. A ameaça da sofística

O resultado dos esforços dos primeiros físicos, no entanto, não foi uma unificação do conhecimento racional sobre a natureza, ao contrário, cada pensador defendia idéias diferentes. Se Tales via a água como o elemento básico da natureza, para Anaximandro este era o éter, para Anaxímenes era o ar, e para Heráclito era o fogo. Para os sofistas, as discordâncias dos sábios eram mais argumentos a favor da idéia que eles defendiam: não existe verdade além daquela que se convenciona aceitar. Os sofistas cobravam por aparições públicas em que discursavam e por aulas em que ensinavam a arte da retórica e da argumentação, habilidades muito valiosas para o exercício político. Por isso, eram muito influentes. A filosofia socrática/platônica, o primeiro grande sistema filosófico que conhecemos, é em grande parte uma reação à ameaça dos sofistas, à ameaça do relativismo. A filosofia virá direcionar o exercício do intelecto humano para o esforço por conceber a verdade, a essência das coisas. Usando a famosa figura de linguagem de Platão, para "destrinchar a natureza", separar o verdadeiro do falso, o real do ilusório, o essencial do contingente, não por uma convenção humana, mas de forma a representar o que de fato acontece na natureza.

Polaridade: verdade (alethea - filosofia) X opinião (doxa - sofística)

6. A identidade Helênica

Eu chamo de identidade helênica a uma característica do pensamento grego que perdurará durante cerca de dois mil anos. Trata-se da estreita relação entre conceitos expressa na seguinte identidade: Verdade = Bom = Justo = Belo. É claro que a cultura grega não concebia estes conceitos como iguais, conhecendo bem as características distintas de cada um, mas eles eram aproximadamente coextensivos, ou seja, referiam-se a um mesmo conjunto de coisas do mundo. Os épicos homéricos eram estética e ritmicamente perfeitos, o que os tornava também verdadeiros. O homem que agisse de forma boa e justa teria encontrado a forma certa, verdadeira, e a mais bela, de agir. Há um princípio teleológico por trás dessa forma de ver, que identifica com a verdade e com a justiça aquilo que é a solução ideal, perfeita, correta, de cada problema. Existe, dessa forma, um discurso qualitativo, subjetivo, a que se pode atribuir status epistemológico.

Temos até aqui, portanto, que ciência é um discurso racional orientado para a verdade. Este pensamento representa uma forma de se ver o mundo que dará origem a diversos sistemas de ciência, alguns muito diferentes entre si, como por exemplo a física aristotélica e a física cartesiana. Mas por diferentes que sejam as teorias que surgiram ao longo dos dois milênios em que esta visão de mundo imperou, uma mudança realmente radical a ponto de ser revolucionária só viria a acontecer no século XVI.

7. Segundo momento: Revolução científica

Entre os séculos XVI e XVII, em meio ao Renascimento, um conjunto de novas idéias levaria a uma ruptura radical com a ciência baseada na visão de mundo clássica. O primeiro e mais famoso ataque é creditado a Copérnico, e à ameaçadora concepção de um sistema planetário heliocêntrico. Deslocar a Terra de seu confortável lugar no centro do universo para torná-la apenas mais um planeta a varrer os céus era, sem dúvida, uma mudança gritante, mas a ciência representada por Copérnico ainda não era revolucionária. Seu modelo heliocêntrico explicava alguns fenômenos a mais que seus antecessores, mas criava outros problemas e era demasiado complexo para ser convincente. Além disso, a forma como ele chegou à sua proposta, ou seja, o método, o tipo de ciência que ele praticava, ainda era convencional. Foi Keppler, na verdade, quem fez mais estrago. A partir de dados coletados principalmente por seu mentor, Tycho Brahe, Keppler percebeu que se as órbitas dos planetas fossem elípticas, um modelo heliocêntrico muito simples poderia explicar muito melhor todos os fenômenos astronômicos relevantes à época. Aqui uma nova ciência começava a se desenhar, uma ciência que não se importava em deslocar o centro do universo ou em entortar as órbitas dos planetas, desde que fosse capaz de fazer seus cálculos baterem com as observações. O ideal de um mundo belo e perfeito, desenhado por um designer inteligente, começava a dar lugar a um ideal que considerava apenas a correção matemática. Embora Keppler ainda fosse muito influenciado por uma correlação entre beleza e verdade, sua noção de beleza era matemática.

8. Newton e a unificação da física

Enquanto Keppler decifrava o movimento dos planetas, Galileu foi responsável por semelhante revolução no estudo do movimento dos corpos na Terra. Trajetórias de projéteis, pêndulos, queda livre, a física do movimento fora completamente decifrada e transformada em equações matemáticas. Um último refúgio ainda restava ao pensamento clássico, porém. O fato de que a física da Terra e a dos céus eram incompatíveis. Ainda restava a idéia de que nosso mundo era diferente de um outro mundo, de que haveria uma realidade terrena, e outra celestial. Isso até Newton. Foi preciso nada menos que a invenção de uma nova matemática, o cálculo, e a proposta de uma estranha força que age à distância, a gravidade, para que um gênio levasse a cabo o projeto de unificação da física, e explicasse o todo do universo físico conhecido com apenas quatro leis universais. Quatro leis matemáticas.

"Nature and nature's laws lay hid in night,
 God said, "Let Newton be," and all was light".

Alexander Pope

9. Empirismo?

A revolução científica inaugurou uma nova forma de fazer ciência, mas sua ruptura com o passado não foi, como é usual pensarmos, calcada no empirismo. A necessidade de conformar a teoria com a observação da natureza foi, sem dúvida, confirmada por estes novos cientistas, e é um dos principais pontos metodológicos defendidos por Newton em seu "Principia Mathematica". Mas esta necessidade já operava desde o primeiro movimento científico, desde a física jônica. É verdade que houve Platão, e houve Descartes, representantes de um ideal racionalista que desconfiava da observação do mundo físico como uma ameaça à verdade, mais uma ilusão que uma fonte de dados. Mas também houve a física aristotélica, a mais influente do período, fortemente calcada na observação empírica, e o ideal científico de observar a natureza, levantar hipóteses e realizar testes experimentais sempre esteve presente. Não foi por afirmar o empirismo que a revolução científica foi revolucionária. Ao contrário, sua principal característica foi uma forma de idealismo: a matematização do universo. Foi o esforço de encontrar, para além da impermanência ilusória do mundo físico, uma ordem perene, lógica, perfeita, quantificável: as leis da natureza. Tratava-se de extrair da observação empírica uma lei universal, traduzindo o fato em números. "A matemática é o alfabeto com que Deus escreveu o universo", escreveu Galileu.

Polaridade: quantidade X qualidade (o bom, belo e o justo deixam de ser critérios de verdade, a lógica matemática passa a ser)

10. Terceiro momento: Positivismo lógico

Da nova ciência, pós revolução científica, saíram vários discursos com pretensão ao status epistemológico, dentre eles, a teoria da evolução de Darwin, a psicologia de Freud, a nova física de Einstein e o materialismo histórico de Marx. Este último imediatamente salta aos olhos como a "ovelha negra" do grupo, aquele que rápida e intuitivamente identificamos como um não cientista, estranhamente listado em uma relação de cientistas.  Mas essa intuição depende exatamente da contribuição do positivismo lógico para a história até aqui. Desta doutrina é que sairá o tipo de empirismo que ainda hoje caracteriza a empreitada científica, e que permitirá traçar uma distinção entre disciplinas que não era absolutamente óbvia antes. Todas as quatro teorias listadas acima tinham pretensões científicas, e foram formuladas de modo a atender ao que se considerava científico na época: analisar dados obtidos pela experiência, e a partir desta observação tentar derivar leis universais, regras que permitam descrever os dados e fazer previsões. Os pensadores do positivismo lógico, porém, precisavam de um novo conceito de rigor científico que permitisse a Einstein e Darwin um lugar dentro das fronteiras da ciência, ao mesmo tempo excluindo Freud e Marx, que não os convenciam como teorias merecedoras do status epistemológico.

11. Verificabilidade e sentido

O rigor lógico desta nova doutrina pode ser esquematicamente resumido na frase: não há sentido no que não pode ser verificado pela experiência. Uma afirmação científica deve fazer sentido, e por "fazer sentido" entende-se que deve ser possível atribuir a ela um valor de verdadeiro ou falso. A única forma de se atribuir este valor é verificando pela experiência. Portanto, o que não pode ser verificado pela experiência não tem sentido. Colocando as coisas nestes termos, é fácil ver que a exigência de se ancorar qualquer conceito e qualquer afirmação na verificabilidade pela experiência provê um empirismo muito mais exigente e muito mais radical que o da revolução científica.

Freud podia ser considerado um cientista, nos moldes do renascimento, pois observava seus pacientes, construía hipóteses, testava-as e modificava-as de acordo com suas observações, e construía assim uma proposta teórica de "leis universais" do funcionamento psíquico. Mas não passava no teste do positivismo lógico, pois não ancorava seus conceitos na experiência com o rigor exigido pela verificabilidade. Afirmações como: "existe um super ego", ou "existe um impulso de morte", só podem fazer sentido se for possível atribuir a elas um valor de verdadeiro ou falso, através da verificação experimental. Como isso é impossível, Freud, para o positivismo lógico, simplesmente não faz sentido.

O mesmo sobre Marx, cuja teoria faz a clara previsão de que o alto grau de exploração envolvido no sistema capitalista inevitavelmente levará a uma revolução do proletariado. Esta ocorreria justamente nas condições de maior exploração, ou seja, nas sociedades capitalistas altamente industrializadas. Quando a revolução ocorreu na Rússia rural, isso não serviu para refutar a teoria, apenas gerou novas especulações para mantê-la. A afirmação da tese marxista é de tal forma que não pode ser verificada, pois enquanto não ocorrer continua sendo possível que ocorra, se ocorrer de forma diferente da prevista, como ocorreu, não se estabelece a relação do fato com a teoria, e ainda que ocorra, não restará verificada sua inevitabilidade. Ou seja, pelo positivismo lógico, não se trata sequer de defender que seja uma tese errada, apenas que ela não tem sentido.

Einstein afirmava coisas que eram impossíveis de serem verificadas pelas limitações experimentais da época. Mas os positivistas lógicos reconheciam uma diferença essencial na formalização lógica de suas afirmações. Elas eram verificáveis, em sua estrutura lógica, mesmo que circunstancialmente não o fossem pela prática. Bastava, a partir da nova teoria, desenvolver os recursos experimentais para testá-la. Uma das primeiras verificações da teoria da relatividade foi realizada em Sobral, no Ceará. Sir Eddington mediu o desvio na trajetória da luz provocado pelo Sol, que pela teoria geral da relatividade seria diferente do previsto pela física newtoniana, aproveitando-se de um eclipse total do Sol em 1919. O resultado experimental confirmou as previsões de Einstein com grande exatidão. Einstein elaborou sua teoria, fez uma previsão radical e potencialmente verificável pela experiência, e a experiência eventualmente a confirmou. Isso era, para os positivistas lógicos, a essência da prática científica. Einstein passava no teste.

Darwin, por sua vez, contra as espectativas subjetivas dos positivistas que reconheciam o status epistemológico de sua teoria, estava na corda bamba. A teoria da evolução, em sua formulação original, era claramente científica pelo paradigma do renascimento, mas não passava no crivo deste novo empirismo. Muito por causa da circularidade de sua tese principal: sobrevivem os mais aptos, que reconhecemos por serem aqueles que sobreviveram. Darwin oferecia uma enorme quantidade de dados empíricos, mas nenhuma afirmação verificável pela experiência. A teoria da evolução só foi satisfatoriamente redimida décadas depois, entre os anos 60 e 70, com a reformulação da tese da sobrevivência dos mais aptos para a da sobrevivência de genes em uma população, fenômeno estatisticamente verificável.

Chegamos a uma visão da ciência como um discurso racional, quantificável, estritamente limitado às afirmações que podem ser empiricamente verificadas, e orientado para a verdade. Este é o ápice da ciência objetiva (verdade, número, verificabilidade), e é o modelo de ciência mais influente até hoje.

12. A reação humanista

É interessante notar que o esforço extremo de verificabilidade empírica proposto pelo positivismo lógico foi exatamente o que o distanciou do realismo. Um exercício de pensamento que ilustra bem isso é a questão: "Se uma árvore cai no meio da floresta quando não há ninguém por perto para ouvir, ela emite som?". Nossa intuição realista, alimentada por nosso conhecimento científico, leva a maior parte das pessoas a concluir que sim, independente de haver alguém para registrar o fato, há vibração material e deslocamento de ar gerando uma onda sonora. Mas a única resposta coerente para um positivista lógico seria: "Esta pergunta não faz sentido". Claro, porque a pergunta pode ser formulada como: "O que acontece quando não há ninguém para verificar o que acontece?", e a estrutura dessa pergunta é tal que ela não pode ser verificada, e portanto não pode ter um valor de verdadeiro ou falso atribuído a ela, e portanto não faz sentido. É útil que o positivismo lógico seja capaz de propor um rigor contra-intuitivo para demarcar o que é ciência e o que não é, pois essa demarcação não deveria ficar por conta de nossa intuição. Einstein e sua física relativística altamente contra-intuitiva passaram a exigir isso. Mas que fazer com a intuição realista? Que fazer com nossa experiência subjetiva de que a ciência goza de um status epistemológico e que podemos assim concluir coisas sobre como o mundo realmente é? Inclusive que é óbvio que uma árvore caindo emite som mesmo que não haja ninguém lá para verificar? A derrocada do positivismo lógico veio justamente de pensadores que não eram exatamente contrários a ele. Thomas Khun, um físico, mostrou que a ciência sofre grande influência de paradigmas históricos e culturais. Karl Popper, aplicando a mesma filosofia radicalmente lógica dos positivistas, atacou o critério de verificabilidade, e propôs que as afirmações científicas só podem ser consideradas verdadeiras enquanto não forem falsificadas. E Quine, que se considerava um positivista lógico, deu o derradeiro tiro no pé do movimento ao levar suas conclusões às últimas consequências e mostrar que nenhuma afirmação isolada podia ter valor de verdadeira ou falsa por compor uma rede de crenças (web of belief) com incontáveis outras afirmações e pressuposições. O empirismo radical levaria a ciência positivista a se distanciar do realismo, a crença de que os dados científicos traduzem o que realmente acontece na natureza, um componente importante do subjetivo status epistemológico que queremos atribuir aos dados científicos. O positivismo expunha a jugular a ataque, e se houvesse algum inimigo à espreita, bastaria morder. Obviamente, havia muitos inimigos à espreita. Ora, o positivismo lógico acabara de concluir que todos os discursos pretensamente científicos das disciplinas de humanidades eram apenas blablablá. "Não fique triste, não estou dizendo que o trabalho de sua vida está errado. Só que ele não faz nenhum sentido", diriam os positivistas, e é claro que a resposta dos humanistas não seria: "Tem razão, melhor eu tentar a sorte como pedreiro, então". Não, a reação veio, principalmente, em um tipo de discurso que pode ser conjuntamente chamado de sociologia da ciência. Uma proposta de investigar como a ciência acontece, de identificar as influências extra-científicas que agem sobre ela, e de relativizar o status epistemológico de seus dados, que passariam a ser compreendidos como construções sociais, não mais como tradução direta da realidade.

13. Science wars

 Como resultado deste processo, as disciplinas científicas nas duas grandes áreas, ciências da natureza e ciências humanas, tornaram-se cada vez mais diferentes e não sem certo antagonismo. No entanto, as ciências naturais desenvolveram tanta capacidade preditiva e levaram a tão grande progresso, que não tardou para que seus métodos passassem a ser incorporados pelas ciências humanas. O exemplo da psicologia é claro: os discursos subjetivos, especulativos, que imperavam desde Freud, foram sendo paulatinamente substituídos por uma redução do psicológico ao seu menor componente observável, quantificável e verificável, o comportamento. Em todas as áreas das humanidades passou a acontecer, com maior ou menor êxito, uma adaptação de práticas e métodos para torná-las mais objetivas e, quem sabe, mais preditivas e eficazes. E quanto mais abissal a diferença entre dois tipos de discurso, maior a chance de que o debate construtivo degenere em mal estar e trocas de acusações. Foi o que levou ao episódio conhecido como "science wars", quando durante as décadas de 80 e 90, em diversas publicações e congressos, cientistas, filósofos e sociólogos transformaram a disputa por status epistemológico em uma guerra que repercutiu até na imprensa leiga. O ponto alto da infeliz disputa foi o episódio protagonizado pelo físico Alan Sokal, que escreveu um texto pretensamente sobre sociologia da ciência, e conseguiu publicá-lo em uma edição especial sobre as "science wars" na revista "Social Text", da Duke University. Depois, Sokal publicaria um outro artigo em que descrevia um "experimento científico",  revelando que o texto enviado àquela revista era apenas uma colagem de frases rebuscadas e ininteligíveis e que não fazia nenhum sentido, tendo com sua aprovação para publicação provado que ninguém realmente sabia do que estava falando quando fazia sociologia da ciência. O episódio ainda gerou uma resposta dura, mas até conciliatória, de Derrida, embora, obviamente, tenha servido apenas para mostrar que a disputa havia chegado a um ponto além da interlocução produtiva.

14. Nos ombros de gigantes

A disputa por status epistemológico não terminou, e há quem duvide que ela termine algum dia. O que eu tenho chamado de disputa por status também é conhecido por outro nome: o problema da demarcação. A dificuldade aparentemente insolucionável de se definir um critério claro de ciência, que destrinche o conhecimento científico do não científico, da mesma maneira como a ciência pretende destrinchar a verdade da ilusão. Talvez a dificuldade resida no fato de que demarcação, e status epistemológico, sejam conceitos extra científicos, e quanto mais sucesso as ciências têm mais elas tentam negar a validade de qualquer discurso extra científico. Cientistas querem acreditar que só eles podem falar sobre ciência, que o que é possível ser dito sobre ela é apenas o que é possível ser dito por ela. Alguma noção de história da ciência, como a que tentei transmitir aqui, por superficial que seja, oferece inúmeras oportunidades para que se reconheça o quanto o progresso científico depende não só de cientistas que extrapolem métodos, mas também daqueles que têm a capacidade de articular os discursos extra científicos que permitem as próprias formulações metodológicas. Newton, uma das mentes mais brilhantes que a humanidade já conheceu, deixou a modesta confissão: "Se enxerguei mais longe, foi porque subi nos ombros de gigantes". Para além de uma demonstração de humildade, e do reconhecimento da ciência como uma prática coletiva, a frase também contém o sentido de que o progresso só é possível a partir do conhecimento do passado. A ciência como conhecemos hoje é a melhor que já existiu, mas não é a melhor possível. Já sentimos em muitas disciplinas as limitações dos métodos existentes, e seria ingenuidade histórica não admitir que eventualmente qualquer progresso será impossível dentro destas limitações. Lá, no fim do método, os pequenos continuarão batendo a cabeça contra a parede, enquanto os que subirem nos ombros dos gigantes da história enxergarão mais longe.