Ninguém sabe o que diz quando diz “amo”.
É fabuloso observar como bebês aprendem a
falar. Como se dá? Ora, há no bebê um limite do que ele pode, e seu
desenvolvimento é a constante expansão desse limite. O que força esse limite? Vontade.
Ele tem certa volição, e recruta o máximo daquilo que pode, o tempo todo, para
esse fim. Ele fala a partir do momento em que pode, e então o fará sempre.
Nunca fala, portanto, porque quer falar. Fala porque tem alguma vontade, e faz
tudo o que pode para realizar seu intento, inclusive falar, quando fazê-lo
passa a fazer parte daquilo que lhe é possível.
Isso me pareceu tão surpreendente
observando Helena: é que a linguagem, quando nasce, não é referencial. Ela não
falava porque queria dizer aquilo que falava, mas porque podia falar aquilo,
para realizar o que queria. Falar era parte do esforço de realizar sua vontade.
Nesses primórdios da vida intelectual,
símbolos, hábitos, aproximações, são tudo o que há. Eventualmente, a fala
passava a ser associada, por contingência, por semelhança, por indexação, à
coisa referida. Foi fácil ver isso acontecendo, aos poucos, em relação primeiro
às coisas mais concretas — brinquedos, cores, pessoas —, e depois às coisas
menos concretas — maior, menor, alegre, triste. Essencialmente, nada muda, é
tudo associação e hábito. No limite, o sentido de “triste” será sempre “aquilo
que se diz quando [tal e tal situação]”. Mas aos poucos vai acontecendo a meta
linguagem do entendimento, e ela poderá falar sobre o que é “triste”. Ela ainda
não pode, mesmo que já empregue o termo perfeitamente.
E amor? Ela já fala “te amo”, quase que
exclusivamente quando solicitada, ou devolvendo a declaração. Mas em nenhuma de
suas falas o caráter contingencial, mecânico, não referencial é tão claro
quanto nesta. É fácil ter a impressão de que ela compreende o que diz em algum
nível superior, quando ela diz qualquer coisa, menos “te amo”. O que é “te amo”?
É “aquilo se diz em resposta a ‘te amo’”. É tão óbvio, que ela não sabe o que
diz.
E, pensando bem, quando é que nós, adultos,
vamos desenvolver a meta linguagem do entendimento e saber dizer o que é “amo”?
Veja que não se trata nem da dificuldade de definir o que é “amor”. Ponha “amor”
na categoria dos transcendentes. Das ideias confusas que temos de propor quando
ultrapassamos nossa capacidade de dar conta das instâncias de sentir que amamos,
e temos então de inventar “O Amor”. Que seja, nem precisa dessa polêmica.
Esqueça o “amor” e veja se compreende o que é “amo”. Sabemos tão pouco! Sabemos
mais, ou menos, que uma criança de dois anos?
Há um sentido em que, talvez, a criança
esteja mais próxima de entender o que é “amo” que nós, adultos. Ninguém ama se
não amar alguma coisa, mas a experiência de sentir que ama é diferente do amar
alguma coisa. Amar é uma experiência não referencial, e talvez haja na
incompletude da linguagem infantil, na sua pureza não referencial, um sentido
maior de “amo” que aquele que, adultos, somos capazes de inferir.
“Eu amo”, enquanto sentimento, talvez possa
ser claro e unívoco. Mas será sempre um símbolo, confuso e equívoco, quando
proferido.
Amar parece ser sempre um reconhecimento.
É duro admitir, mas, é logicamente
impossível amar Helena antes de ela ser Helena. Que é esse amor que se tem por
filhos antes de eles existirem? É fácil afirmar que não há amor na vontade de
ter um filho, na decisão de ter um filho, na expectativa de ter um filho,
quando ele ainda é só um abstrato. É fácil ver, mas não é indiscutível.
Mas vai ficando confuso saber se é ou não
amor o que se sente pelo feto. Onde traçar a linha? Em certos aspectos, é uma
discussão parecida à polêmica do aborto. A partir de qual momento há algo que
pode ser amado? Pode-se amar o teste positivo? A imagem do ultrassom? O peso na
barriga? O chute? O berro ao nascer? O primeiro colo? O primeiro sorriso reflexo?
Cada um vai começar a responder sim em diferentes pontos dessa sequência de
perguntas. Mas, no fundo, enquanto o filho ainda não interage, não responde de
nenhuma maneira particular, não se distingue através de alguma individualidade,
como é possível dizer que é a ele, especificamente, que se ama?
Embora nunca haja um momento definido em
que um filho passe a ser um indivíduo, sem dúvida que alguma transformação se
opera. E é um processo longo, que dura talvez a vida inteira, esse de se tornar
um indivíduo. Haveria uma correspondente transformação do amor que se sente?
Vai-se experimentando um amor diferente, conforme deixa de ser um amor genérico
para ser um amor individual?
Talvez. São perguntas difíceis. Mas o que me
interessa, o que acho que se pode dizer que sabemos, na medida em que é o que
experimentamos, é que muito do que se chama amor por um filho é algo que se
carrega desde antes de haver, propriamente, um filho. Neste sentido, o amor não
depende tanto do que se descobre sobre aquele ser em particular, mas do que se
reconhece.
Amar verdadeiramente é uma experiência de comunhão.
Falar em amor como um reconhecimento parece
ser egoísta. É como se só fosse possível amar a si mesmo — o que se vê,
projeta, encontra no outro de semelhante a si.
Mas como poderia ser diferente? E porque
isso haveria de diminuir, de qualquer forma, o valor que se atribui à
experiência de amar? Quer se propor um amor que una as pessoas, que rompa
barreiras, que celebre as diferenças. Isso é o que se aprende na escola, na
televisão, nos romances. Mas quero falar do que aprendi com minha filha. Aos
dois anos ela não sabe o que é “amar a humanidade”. Aos dois anos ela é uma
máquina de egoísmos. Poderia ela me ensinar algo sobre o amor? Só ela pôde.
Aprendi que não sabemos o que é o amor. Mal
conseguimos saber o que é amar, o que é dizer “amo”. É difícil, confuso,
intermediado por associações e hábitos.
Aprendi que falamos porque podemos. Somos
afetados pelas coisas, reagimos a elas, somos de alguma forma direcionados por
essa afecções, e falamos como parte desse processo de agir em direção à
vontade. Só temos alguma compreensão das coisas na medida em que podemos falar
sobre o que falamos delas. O animal racional vai assim desenvolvendo a razão,
criando discursos, contando histórias, e tornando-se um indivíduo. Quanto mais
indivíduo, mais maduro, mais intermediado por signos, por linguagem, por
associações e hábitos.
É uma faculdade incrível, valiosa, útil — a
razão. Nasce dos encontros, dos contatos com as coisas do mundo, e vai
estabelecendo uma compreensão dessas relações, que dá sentido ao fluxo das
experiências. Mas só a partir dessa razão construída é que se pode acusar de
egoísmo que se ame o que há de comum. É um fetichismo do ego, que dá tal valor
ao indivíduo que se sente envergonhado de amá-lo. Interessante. É tão
fundamental que se invente um “Eu”, em oposição ao mundo, que reconhecê-lo no
mundo parece ruim.
Uma criança sabe o que é bom. Justamente
porque ainda não sabe o que é “O Amor”, nem “O Bem”, nem “O Mal”, é que ela
sabe tão bem o que é “amo”, “bom”, e “mau”. Eu tenho uma intensa experiência do
amor de minha filha em diversos momentos. Aqueles em que ela diz “te amo”,
normalmente não estão entre eles. Talvez por isso seja tão mais difícil
desenvolver a meta linguagem do entendimento para o amor que para outros
sentimentos. É mais fácil aprender a discursar sobre o que é “triste” ou “alegre”
que sobre o que é “amo”. Porque aos poucos vai-se associando o ato de discurso “triste”
com os maus encontros, e o ato de discurso “alegre” com os bons encontros. Já o
ato de discurso “amo”, por algum motivo, vai ter que ser submetido ao escrutínio
das virtudes, do mérito, para saber se é puro, altruísta, desinteressado o
suficiente para ser digno de ser chamado “Amor”. Uma criança sabe que só o que
advém do desinteresse é a falta de afeto. Amar é reconhecer, ressoar, compor.
O importante não é como se deve amar, mas
como se pode amar. Não se haveria de ensinar para as crianças que deve-se amar
isso ou aquilo, dessa forma ou de outra. Mas que se pode amar. Que o segredo
para uma boa vida, para ser uma boa pessoa, para não ser egoísta, nem
mesquinha, nem preconceituosa, é a capacidade para o afeto (a afetividade). Quando
mais capacidade para o amor, mais abertura para o mundo, mais diferentes formas
de se reconhecer.
Amar verdadeiramente é a extraordinária
experiência do comum.