sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O que aprendi sobre o amor desde o nascimento de minha filha.


Ninguém sabe o que diz quando diz “amo”.


É fabuloso observar como bebês aprendem a falar. Como se dá? Ora, há no bebê um limite do que ele pode, e seu desenvolvimento é a constante expansão desse limite. O que força esse limite? Vontade. Ele tem certa volição, e recruta o máximo daquilo que pode, o tempo todo, para esse fim. Ele fala a partir do momento em que pode, e então o fará sempre. Nunca fala, portanto, porque quer falar. Fala porque tem alguma vontade, e faz tudo o que pode para realizar seu intento, inclusive falar, quando fazê-lo passa a fazer parte daquilo que lhe é possível.

Isso me pareceu tão surpreendente observando Helena: é que a linguagem, quando nasce, não é referencial. Ela não falava porque queria dizer aquilo que falava, mas porque podia falar aquilo, para realizar o que queria. Falar era parte do esforço de realizar sua vontade.

Nesses primórdios da vida intelectual, símbolos, hábitos, aproximações, são tudo o que há. Eventualmente, a fala passava a ser associada, por contingência, por semelhança, por indexação, à coisa referida. Foi fácil ver isso acontecendo, aos poucos, em relação primeiro às coisas mais concretas — brinquedos, cores, pessoas —, e depois às coisas menos concretas — maior, menor, alegre, triste. Essencialmente, nada muda, é tudo associação e hábito. No limite, o sentido de “triste” será sempre “aquilo que se diz quando [tal e tal situação]”. Mas aos poucos vai acontecendo a meta linguagem do entendimento, e ela poderá falar sobre o que é “triste”. Ela ainda não pode, mesmo que já empregue o termo perfeitamente.

E amor? Ela já fala “te amo”, quase que exclusivamente quando solicitada, ou devolvendo a declaração. Mas em nenhuma de suas falas o caráter contingencial, mecânico, não referencial é tão claro quanto nesta. É fácil ter a impressão de que ela compreende o que diz em algum nível superior, quando ela diz qualquer coisa, menos “te amo”. O que é “te amo”? É “aquilo se diz em resposta a ‘te amo’”. É tão óbvio, que ela não sabe o que diz.

E, pensando bem, quando é que nós, adultos, vamos desenvolver a meta linguagem do entendimento e saber dizer o que é “amo”? Veja que não se trata nem da dificuldade de definir o que é “amor”. Ponha “amor” na categoria dos transcendentes. Das ideias confusas que temos de propor quando ultrapassamos nossa capacidade de dar conta das instâncias de sentir que amamos, e temos então de inventar “O Amor”. Que seja, nem precisa dessa polêmica. Esqueça o “amor” e veja se compreende o que é “amo”. Sabemos tão pouco! Sabemos mais, ou menos, que uma criança de dois anos?

Há um sentido em que, talvez, a criança esteja mais próxima de entender o que é “amo” que nós, adultos. Ninguém ama se não amar alguma coisa, mas a experiência de sentir que ama é diferente do amar alguma coisa. Amar é uma experiência não referencial, e talvez haja na incompletude da linguagem infantil, na sua pureza não referencial, um sentido maior de “amo” que aquele que, adultos, somos capazes de inferir.

“Eu amo”, enquanto sentimento, talvez possa ser claro e unívoco. Mas será sempre um símbolo, confuso e equívoco, quando proferido.

Amar parece ser sempre um reconhecimento.


É duro admitir, mas, é logicamente impossível amar Helena antes de ela ser Helena. Que é esse amor que se tem por filhos antes de eles existirem? É fácil afirmar que não há amor na vontade de ter um filho, na decisão de ter um filho, na expectativa de ter um filho, quando ele ainda é só um abstrato. É fácil ver, mas não é indiscutível.

Mas vai ficando confuso saber se é ou não amor o que se sente pelo feto. Onde traçar a linha? Em certos aspectos, é uma discussão parecida à polêmica do aborto. A partir de qual momento há algo que pode ser amado? Pode-se amar o teste positivo? A imagem do ultrassom? O peso na barriga? O chute? O berro ao nascer? O primeiro colo? O primeiro sorriso reflexo? Cada um vai começar a responder sim em diferentes pontos dessa sequência de perguntas. Mas, no fundo, enquanto o filho ainda não interage, não responde de nenhuma maneira particular, não se distingue através de alguma individualidade, como é possível dizer que é a ele, especificamente, que se ama?

Embora nunca haja um momento definido em que um filho passe a ser um indivíduo, sem dúvida que alguma transformação se opera. E é um processo longo, que dura talvez a vida inteira, esse de se tornar um indivíduo. Haveria uma correspondente transformação do amor que se sente? Vai-se experimentando um amor diferente, conforme deixa de ser um amor genérico para ser um amor individual?

Talvez. São perguntas difíceis. Mas o que me interessa, o que acho que se pode dizer que sabemos, na medida em que é o que experimentamos, é que muito do que se chama amor por um filho é algo que se carrega desde antes de haver, propriamente, um filho. Neste sentido, o amor não depende tanto do que se descobre sobre aquele ser em particular, mas do que se reconhece.

Amar verdadeiramente é uma experiência de comunhão.


Falar em amor como um reconhecimento parece ser egoísta. É como se só fosse possível amar a si mesmo — o que se vê, projeta, encontra no outro de semelhante a si.

Mas como poderia ser diferente? E porque isso haveria de diminuir, de qualquer forma, o valor que se atribui à experiência de amar? Quer se propor um amor que una as pessoas, que rompa barreiras, que celebre as diferenças. Isso é o que se aprende na escola, na televisão, nos romances. Mas quero falar do que aprendi com minha filha. Aos dois anos ela não sabe o que é “amar a humanidade”. Aos dois anos ela é uma máquina de egoísmos. Poderia ela me ensinar algo sobre o amor? Só ela pôde.

Aprendi que não sabemos o que é o amor. Mal conseguimos saber o que é amar, o que é dizer “amo”. É difícil, confuso, intermediado por associações e hábitos.

Aprendi que falamos porque podemos. Somos afetados pelas coisas, reagimos a elas, somos de alguma forma direcionados por essa afecções, e falamos como parte desse processo de agir em direção à vontade. Só temos alguma compreensão das coisas na medida em que podemos falar sobre o que falamos delas. O animal racional vai assim desenvolvendo a razão, criando discursos, contando histórias, e tornando-se um indivíduo. Quanto mais indivíduo, mais maduro, mais intermediado por signos, por linguagem, por associações e hábitos.

É uma faculdade incrível, valiosa, útil — a razão. Nasce dos encontros, dos contatos com as coisas do mundo, e vai estabelecendo uma compreensão dessas relações, que dá sentido ao fluxo das experiências. Mas só a partir dessa razão construída é que se pode acusar de egoísmo que se ame o que há de comum. É um fetichismo do ego, que dá tal valor ao indivíduo que se sente envergonhado de amá-lo. Interessante. É tão fundamental que se invente um “Eu”, em oposição ao mundo, que reconhecê-lo no mundo parece ruim.

Uma criança sabe o que é bom. Justamente porque ainda não sabe o que é “O Amor”, nem “O Bem”, nem “O Mal”, é que ela sabe tão bem o que é “amo”, “bom”, e “mau”. Eu tenho uma intensa experiência do amor de minha filha em diversos momentos. Aqueles em que ela diz “te amo”, normalmente não estão entre eles. Talvez por isso seja tão mais difícil desenvolver a meta linguagem do entendimento para o amor que para outros sentimentos. É mais fácil aprender a discursar sobre o que é “triste” ou “alegre” que sobre o que é “amo”. Porque aos poucos vai-se associando o ato de discurso “triste” com os maus encontros, e o ato de discurso “alegre” com os bons encontros. Já o ato de discurso “amo”, por algum motivo, vai ter que ser submetido ao escrutínio das virtudes, do mérito, para saber se é puro, altruísta, desinteressado o suficiente para ser digno de ser chamado “Amor”. Uma criança sabe que só o que advém do desinteresse é a falta de afeto. Amar é reconhecer, ressoar, compor.

O importante não é como se deve amar, mas como se pode amar. Não se haveria de ensinar para as crianças que deve-se amar isso ou aquilo, dessa forma ou de outra. Mas que se pode amar. Que o segredo para uma boa vida, para ser uma boa pessoa, para não ser egoísta, nem mesquinha, nem preconceituosa, é a capacidade para o afeto (a afetividade). Quando mais capacidade para o amor, mais abertura para o mundo, mais diferentes formas de se reconhecer.

Amar verdadeiramente é a extraordinária experiência do comum.