1. Status Epistemológico
A noção de status Epistemológico é em si uma noção subjetiva. Trata-se da
experiência de certa forma de crença que se chama científica. O que chamo de "forma
de crença" é apenas uma maneira de me referir à experiência subjetiva de acreditar em
algo. Por exemplo, alguém pode acreditar em um fato
científico, como a lei da gravitação universal e ao mesmo tempo acreditar em Deus,
reconhecendo que são duas formas diferentes de se
acreditar, que constituem diferentes maneiras de propor a realidade de um dado.
Da mesma forma, alguém pode emitir opiniões e acreditar nelas, por exemplo, ao afirmar: "é fato que o mar é bonito", mas saberá reconhecer que acredita nisso de forma diferente da qual
acredita em Deus, ou na lei da gravitação universal. Aqui não se trata de definir qual crença é mais forte, mais valiosa, ou
mais justificada, apenas notar que são formas diferentes de crença. O dado que se diz científico
goza, assim, de um status particular, característico.
Os dados em que acreditamos por serem ditos científicos
passam a constituir uma forma específica de conhecimento, que
podemos diferenciar de outras coisas que acreditamos conhecer.
2. A
disputa por status
Enquanto
a "forma de crença" é algo estritamente subjetivo, o status epistemológico de um dado científico pode ser disputado em
termos objetivos. Disciplinas que clamam para si um estatuto de ciência querem afirmar que os dados que geram podem gozar
deste status. Cientistas gostariam de poder dizer que a decisão sobre quais tipos de dados gozam deste status e quais não depende apenas da própria empreitada científica, da aplicação rigorosa de um método. Mas efetivamente isso não
é possível. Essa é uma discussão extra científica que envolve desde debates
sobre quão restritivo é o método, até debates políticos. Por exemplo, a
psicologia pode submeter-se ao método e tratar apenas dos fenômenos observáveis objetivos, ou pode propor
flexibilizações do método que possibilitem gerar dados sobre fenômenos subjetivos, e ainda assim pleitear este status
epistemológico. Ou, o CFM pode
reconhecer a homeopatia como especialidade médica,
efetivamente concedendo-lha este status por decreto. É claro, status epistemológico
continua sendo essencialmente uma experiência subjetiva, de modo que
alguns serão convencidos por decretos ou
por acomodações metodológicas, enquanto outros não,
dando origem a acalorados debates.
3. O
plano da aula
O
objetivo da aula será ilustrar esta questão, e instrumentalizar o aluno para tais debates, através de um rápido e, infelizmente,
superficial sobrevôo pela história da ciência, para apresentar um
recorte, uma possível narrativa dentre as várias que se poderia construir sobre o tema, de como a ciência que conhecemos hoje aconteceu de ser como ela é.
4.
Primeiro momento: a origem grega
É uma tradicional convenção da cultura ocidental colocar o nascimento da ciência na Grécia antiga, mais
especificamente entre os filósofos conhecidos como físicos jônicos. Ali surgiu a primeira física, entendida como um discurso a respeito da constituição básica, essencial, da natureza.
Tales, o primeiro filósofo e primeiro físico de que temos conhecimento, afirmava que a água era o elemento básico constituinte da vida.
Alguns argumentos de Tales: (1) as margens do Nilo tornam-se férteis após serem inundadas; (2) as
coisas naturais têm tanto mais vida, são tão mais animadas, quanto mais úmidas (compare uma pedra, uma árvore e um cachorro, por exemplo), e (3) tudo o que é vivo seca quando morre. Mesmo que a conclusão a que Tales chegou a partir desses argumentos seja falsa,
este é um pensamento que se utiliza
da razão para explicar a natureza a
partir da natureza, evitando explicações sobrenaturais. No
pensamento mágico, mitológico, que imperava até então, a fertilidade das margens do Nilo seria explicada por
alguma divindade, um espírito, que vivesse no rio, e
que daria a graça da fertilidade conforme
tivesse ou não sido agradado pelos homens.
Tales inaugura o pensamento natural, imanente, racional, em oposição ao pensamento mágico.
Polaridade:
pensamento racional X pensamento mágico (mito).
5. A ameaça da sofística
O
resultado dos esforços dos primeiros físicos, no entanto, não foi uma unificação do conhecimento racional sobre a natureza, ao contrário, cada pensador defendia idéias diferentes. Se Tales via a água como o elemento básico da natureza, para
Anaximandro este era o éter, para Anaxímenes era o ar, e para Heráclito
era o fogo. Para os sofistas, as discordâncias dos sábios eram mais argumentos a favor da idéia que eles defendiam: não
existe verdade além daquela que se convenciona
aceitar. Os sofistas cobravam por aparições públicas em que discursavam e por aulas em que ensinavam a
arte da retórica e da argumentação, habilidades muito valiosas para o exercício político. Por isso, eram muito
influentes. A filosofia socrática/platônica, o primeiro grande sistema filosófico que conhecemos, é em grande parte uma reação à ameaça dos sofistas, à ameaça do relativismo. A filosofia virá direcionar o exercício do intelecto humano para o
esforço por conceber a verdade, a
essência das coisas. Usando a
famosa figura de linguagem de Platão, para "destrinchar a
natureza", separar o verdadeiro do falso, o real do ilusório, o essencial do contingente, não por uma convenção humana, mas de forma a
representar o que de fato acontece na natureza.
Polaridade:
verdade (alethea - filosofia) X opinião (doxa - sofística)
6. A
identidade Helênica
Eu chamo
de identidade helênica a uma característica do pensamento grego que
perdurará durante cerca de dois mil
anos. Trata-se da estreita relação entre conceitos expressa na
seguinte identidade: Verdade = Bom = Justo = Belo. É claro que a cultura grega não
concebia estes conceitos como iguais, conhecendo bem as características distintas de cada um, mas eles eram aproximadamente
coextensivos, ou seja, referiam-se a um mesmo conjunto de coisas do mundo. Os épicos homéricos eram estética e ritmicamente perfeitos, o que os tornava também verdadeiros. O homem que agisse de forma boa e justa
teria encontrado a forma certa, verdadeira, e a mais bela, de agir. Há um princípio teleológico por trás dessa forma de ver, que
identifica com a verdade e com a justiça aquilo que é a solução ideal, perfeita, correta, de
cada problema. Existe, dessa forma, um discurso qualitativo, subjetivo, a que
se pode atribuir status epistemológico.
Temos até aqui, portanto, que ciência
é um discurso racional
orientado para a verdade. Este pensamento representa uma forma de se ver o
mundo que dará origem a diversos sistemas de
ciência, alguns muito diferentes
entre si, como por exemplo a física aristotélica e a física cartesiana. Mas por
diferentes que sejam as teorias que surgiram ao longo dos dois milênios em que esta visão de mundo imperou, uma mudança realmente radical a ponto de ser revolucionária só viria a acontecer no século XVI.
7.
Segundo momento: Revolução científica
Entre os
séculos XVI e XVII, em meio ao
Renascimento, um conjunto de novas idéias levaria a uma ruptura
radical com a ciência baseada na visão de mundo clássica. O primeiro e mais
famoso ataque é creditado a Copérnico, e à ameaçadora concepção de um sistema planetário heliocêntrico. Deslocar a Terra de
seu confortável lugar no centro do
universo para torná-la apenas mais um planeta a
varrer os céus era, sem dúvida, uma mudança gritante, mas a ciência representada por Copérnico
ainda não era revolucionária. Seu modelo heliocêntrico explicava alguns fenômenos a mais que seus antecessores, mas criava outros
problemas e era demasiado complexo para ser convincente. Além disso, a forma como ele chegou à sua proposta, ou seja, o método,
o tipo de ciência que ele praticava, ainda
era convencional. Foi Keppler, na verdade, quem fez mais estrago. A partir de
dados coletados principalmente por seu mentor, Tycho Brahe, Keppler percebeu
que se as órbitas dos planetas fossem elípticas, um modelo heliocêntrico
muito simples poderia explicar muito melhor todos os fenômenos astronômicos relevantes à época. Aqui uma nova ciência começava a se desenhar, uma ciência que não se importava em deslocar o
centro do universo ou em entortar as órbitas dos planetas, desde que
fosse capaz de fazer seus cálculos baterem com as observações. O ideal de um mundo belo e perfeito, desenhado por um
designer inteligente, começava a dar lugar a um ideal que
considerava apenas a correção matemática. Embora Keppler ainda fosse muito influenciado por uma
correlação entre beleza e verdade, sua
noção de beleza era matemática.
8. Newton
e a unificação da física
Enquanto
Keppler decifrava o movimento dos planetas, Galileu foi responsável por semelhante revolução
no estudo do movimento dos corpos na Terra. Trajetórias de projéteis, pêndulos, queda livre, a física
do movimento fora completamente decifrada e transformada em equações matemáticas. Um último refúgio ainda restava ao
pensamento clássico, porém. O fato de que a física da Terra e a dos céus eram incompatíveis. Ainda restava a idéia de que nosso mundo era diferente de um outro mundo, de
que haveria uma realidade terrena, e outra celestial. Isso até Newton. Foi preciso nada menos que a invenção de uma nova matemática, o cálculo, e a proposta de uma estranha força que age à distância, a gravidade, para que um gênio levasse a cabo o projeto de unificação da física, e explicasse o todo do
universo físico conhecido com apenas
quatro leis universais. Quatro leis matemáticas.
"Nature
and nature's laws lay hid in night,
God said, "Let Newton be," and all
was light".
Alexander
Pope
9.
Empirismo?
A revolução científica inaugurou uma nova forma
de fazer ciência, mas sua ruptura com o
passado não foi, como é usual pensarmos, calcada no empirismo. A necessidade de
conformar a teoria com a observação da natureza foi, sem dúvida, confirmada por estes novos cientistas, e é um dos principais pontos metodológicos defendidos por Newton em seu "Principia
Mathematica". Mas esta necessidade já operava desde o primeiro
movimento científico, desde a física jônica. É verdade que houve Platão,
e houve Descartes, representantes de um ideal racionalista que desconfiava da
observação do mundo físico como uma ameaça à verdade, mais uma ilusão
que uma fonte de dados. Mas também houve a física aristotélica, a mais influente do período, fortemente calcada na observação empírica, e o ideal científico de observar a natureza, levantar hipóteses e realizar testes experimentais sempre esteve
presente. Não foi por afirmar o empirismo
que a revolução científica foi revolucionária. Ao contrário, sua principal característica
foi uma forma de idealismo: a matematização do universo. Foi o esforço de encontrar, para além
da impermanência ilusória do mundo físico, uma ordem perene, lógica, perfeita, quantificável:
as leis da natureza. Tratava-se de extrair da observação empírica uma lei universal,
traduzindo o fato em números. "A matemática é o alfabeto com que Deus
escreveu o universo", escreveu Galileu.
Polaridade:
quantidade X qualidade (o bom, belo e o justo deixam de ser critérios de verdade, a lógica matemática passa a ser)
10.
Terceiro momento: Positivismo lógico
Da nova
ciência, pós revolução científica, saíram vários discursos com pretensão
ao status epistemológico, dentre eles, a teoria da
evolução de Darwin, a psicologia de
Freud, a nova física de Einstein e o
materialismo histórico de Marx. Este último imediatamente salta aos olhos como a "ovelha
negra" do grupo, aquele que rápida e intuitivamente
identificamos como um não cientista, estranhamente
listado em uma relação de cientistas. Mas essa intuição
depende exatamente da contribuição do positivismo lógico para a história até aqui. Desta doutrina é que sairá o tipo de empirismo que ainda hoje caracteriza a
empreitada científica, e que permitirá traçar uma distinção entre disciplinas que não
era absolutamente óbvia antes. Todas as quatro
teorias listadas acima tinham pretensões científicas, e foram formuladas de modo a atender ao que se
considerava científico na época: analisar dados obtidos pela experiência, e a partir desta observação tentar derivar leis universais, regras que permitam
descrever os dados e fazer previsões. Os pensadores do
positivismo lógico, porém, precisavam de um novo conceito de rigor científico que permitisse a Einstein e Darwin um lugar dentro das
fronteiras da ciência, ao mesmo tempo excluindo
Freud e Marx, que não os convenciam como teorias
merecedoras do status epistemológico.
11.
Verificabilidade e sentido
O rigor lógico desta nova doutrina pode ser esquematicamente resumido
na frase: não há sentido no que não pode ser verificado pela
experiência. Uma afirmação científica deve fazer sentido, e por
"fazer sentido" entende-se que deve ser possível atribuir a ela um valor de verdadeiro ou falso. A única forma de se atribuir este valor é verificando pela experiência.
Portanto, o que não pode ser verificado pela
experiência não tem sentido. Colocando as coisas nestes termos, é fácil ver que a exigência de se ancorar qualquer conceito e qualquer afirmação na verificabilidade pela experiência provê um empirismo muito mais
exigente e muito mais radical que o da revolução
científica.
Freud
podia ser considerado um cientista, nos moldes do renascimento, pois observava
seus pacientes, construía hipóteses, testava-as e modificava-as de acordo com suas
observações, e construía assim uma proposta teórica
de "leis universais" do funcionamento psíquico. Mas não passava no teste do
positivismo lógico, pois não ancorava seus conceitos na experiência com o rigor exigido pela verificabilidade. Afirmações como: "existe um super ego", ou "existe
um impulso de morte", só podem fazer sentido se for
possível atribuir a elas um valor
de verdadeiro ou falso, através da verificação experimental. Como isso é
impossível, Freud, para o positivismo
lógico, simplesmente não faz sentido.
O mesmo
sobre Marx, cuja teoria faz a clara previsão de que o alto grau de
exploração envolvido no sistema
capitalista inevitavelmente levará a uma revolução do proletariado. Esta ocorreria justamente nas condições de maior exploração, ou seja, nas sociedades
capitalistas altamente industrializadas. Quando a revolução ocorreu na Rússia rural, isso não serviu para refutar a teoria, apenas gerou novas especulações para mantê-la. A afirmação da tese marxista é de tal forma que não pode ser verificada, pois enquanto não ocorrer continua sendo possível
que ocorra, se ocorrer de forma diferente da prevista, como ocorreu, não se estabelece a relação do fato com a teoria, e
ainda que ocorra, não restará verificada sua inevitabilidade. Ou seja, pelo positivismo
lógico, não se trata sequer de defender que seja uma tese errada,
apenas que ela não tem sentido.
Einstein
afirmava coisas que eram impossíveis de serem verificadas
pelas limitações experimentais da época. Mas os positivistas lógicos
reconheciam uma diferença essencial na formalização lógica de suas afirmações. Elas eram verificáveis, em sua estrutura lógica, mesmo que circunstancialmente não o fossem pela prática. Bastava, a partir da
nova teoria, desenvolver os recursos experimentais para testá-la. Uma das primeiras verificações da teoria da relatividade foi realizada em Sobral, no
Ceará. Sir Eddington mediu o desvio
na trajetória da luz provocado pelo Sol,
que pela teoria geral da relatividade seria diferente do previsto pela física newtoniana, aproveitando-se de um eclipse total do Sol
em 1919. O resultado experimental confirmou as previsões de Einstein com grande exatidão. Einstein elaborou sua teoria, fez uma previsão radical e potencialmente verificável pela experiência, e a experiência eventualmente a confirmou. Isso era, para os
positivistas lógicos, a essência da prática científica. Einstein passava no teste.
Darwin,
por sua vez, contra as espectativas subjetivas dos positivistas que reconheciam
o status epistemológico de sua teoria, estava na
corda bamba. A teoria da evolução, em sua formulação original, era claramente científica pelo paradigma do renascimento, mas não passava no crivo deste novo empirismo. Muito por causa da
circularidade de sua tese principal: sobrevivem os mais aptos, que reconhecemos
por serem aqueles que sobreviveram. Darwin oferecia uma enorme quantidade de
dados empíricos, mas nenhuma afirmação verificável pela experiência. A teoria da evolução
só foi satisfatoriamente
redimida décadas depois, entre os anos 60
e 70, com a reformulação da tese da sobrevivência dos mais aptos para a da sobrevivência de genes em uma população,
fenômeno estatisticamente verificável.
Chegamos
a uma visão da ciência como um discurso racional, quantificável, estritamente limitado às
afirmações que podem ser empiricamente
verificadas, e orientado para a verdade. Este é
o ápice da ciência objetiva (verdade, número,
verificabilidade), e é o modelo de ciência mais influente até hoje.
12. A reação humanista
É interessante notar que o
esforço extremo de verificabilidade
empírica proposto pelo positivismo
lógico foi exatamente o que o
distanciou do realismo. Um exercício de pensamento que ilustra
bem isso é a questão: "Se uma árvore cai no meio da floresta
quando não há ninguém por perto para ouvir, ela
emite som?". Nossa intuição realista, alimentada por nosso
conhecimento científico, leva a maior parte das
pessoas a concluir que sim, independente de haver alguém para registrar o fato, há
vibração material e deslocamento de
ar gerando uma onda sonora. Mas a única resposta coerente para um
positivista lógico seria: "Esta
pergunta não faz sentido". Claro,
porque a pergunta pode ser formulada como: "O que acontece quando não há ninguém para verificar o que acontece?", e a estrutura dessa
pergunta é tal que ela não pode ser verificada, e portanto não pode ter um valor de verdadeiro ou falso atribuído a ela, e portanto não faz sentido. É útil que o positivismo lógico seja capaz de propor um rigor contra-intuitivo para
demarcar o que é ciência e o que não é, pois essa demarcação não deveria ficar por conta de nossa intuição. Einstein e sua física relativística altamente contra-intuitiva passaram a exigir isso.
Mas que fazer com a intuição realista? Que fazer com
nossa experiência subjetiva de que a ciência goza de um status epistemológico e que podemos assim concluir coisas sobre como o mundo
realmente é? Inclusive que é óbvio que uma árvore caindo emite som mesmo que não haja ninguém lá para verificar? A derrocada do positivismo lógico veio justamente de pensadores que não eram exatamente contrários
a ele. Thomas Khun, um físico, mostrou que a ciência sofre grande influência
de paradigmas históricos e culturais. Karl
Popper, aplicando a mesma filosofia radicalmente lógica dos positivistas, atacou o critério de verificabilidade, e propôs que as afirmações científicas só podem ser consideradas
verdadeiras enquanto não forem falsificadas. E Quine,
que se considerava um positivista lógico, deu o derradeiro tiro no
pé do movimento ao levar suas
conclusões às últimas consequências e mostrar que nenhuma afirmação isolada podia ter valor de verdadeira ou falsa por compor
uma rede de crenças (web of belief) com incontáveis outras afirmações e pressuposições. O empirismo radical levaria a ciência positivista a se distanciar do realismo, a crença de que os dados científicos
traduzem o que realmente acontece na natureza, um componente importante do
subjetivo status epistemológico que queremos atribuir aos
dados científicos. O positivismo expunha a
jugular a ataque, e se houvesse algum inimigo à
espreita, bastaria morder. Obviamente, havia muitos inimigos à espreita. Ora, o positivismo lógico acabara de concluir que todos os discursos
pretensamente científicos das disciplinas de
humanidades eram apenas blablablá. "Não fique triste, não estou dizendo que o trabalho
de sua vida está errado. Só que ele não faz nenhum sentido",
diriam os positivistas, e é claro que a resposta dos
humanistas não seria: "Tem razão, melhor eu tentar a sorte como pedreiro, então". Não, a reação veio, principalmente, em um tipo de discurso que pode ser
conjuntamente chamado de sociologia da ciência. Uma proposta de
investigar como a ciência acontece, de identificar
as influências extra-científicas que agem sobre ela, e de relativizar o status
epistemológico de seus dados, que
passariam a ser compreendidos como construções sociais, não mais como tradução direta da realidade.
13.
Science wars
Como resultado deste processo, as disciplinas
científicas nas duas grandes áreas, ciências da natureza e ciências humanas, tornaram-se cada vez mais diferentes e não sem certo antagonismo. No entanto, as ciências naturais desenvolveram tanta capacidade preditiva e
levaram a tão grande progresso, que não tardou para que seus métodos
passassem a ser incorporados pelas ciências humanas. O exemplo da
psicologia é claro: os discursos
subjetivos, especulativos, que imperavam desde Freud, foram sendo
paulatinamente substituídos por uma redução do psicológico ao seu menor componente
observável, quantificável e verificável, o comportamento. Em todas
as áreas das humanidades passou a
acontecer, com maior ou menor êxito, uma adaptação de práticas e métodos para torná-las mais objetivas e, quem
sabe, mais preditivas e eficazes. E quanto mais abissal a diferença entre dois tipos de discurso, maior a chance de que o
debate construtivo degenere em mal estar e trocas de acusações. Foi o que levou ao episódio
conhecido como "science wars", quando durante as décadas de 80 e 90, em diversas publicações e congressos, cientistas, filósofos e sociólogos transformaram a disputa
por status epistemológico em uma guerra que
repercutiu até na imprensa leiga. O ponto
alto da infeliz disputa foi o episódio protagonizado pelo físico Alan Sokal, que escreveu um texto pretensamente sobre
sociologia da ciência, e conseguiu publicá-lo em uma edição especial sobre as
"science wars" na revista "Social Text", da Duke
University. Depois, Sokal publicaria um outro artigo em que descrevia um
"experimento científico", revelando que o texto enviado àquela revista era apenas uma colagem de frases rebuscadas e
ininteligíveis e que não fazia nenhum sentido, tendo com sua aprovação para publicação provado que ninguém realmente sabia do que estava falando quando fazia
sociologia da ciência. O episódio ainda gerou uma resposta dura, mas até conciliatória, de Derrida, embora, obviamente,
tenha servido apenas para mostrar que a disputa havia chegado a um ponto além da interlocução produtiva.
14. Nos ombros de gigantes
A disputa
por status epistemológico não terminou, e há quem duvide que ela termine
algum dia. O que eu tenho chamado de disputa por status também é conhecido por outro nome: o
problema da demarcação. A dificuldade aparentemente
insolucionável de se definir um critério claro de ciência, que destrinche o
conhecimento científico do não científico, da mesma maneira como a
ciência pretende destrinchar a
verdade da ilusão. Talvez a dificuldade resida
no fato de que demarcação, e status epistemológico, sejam conceitos extra científicos, e quanto mais sucesso as ciências têm mais elas tentam negar a
validade de qualquer discurso extra científico. Cientistas querem
acreditar que só eles podem falar sobre ciência, que o que é possível ser dito sobre ela é
apenas o que é possível ser dito por ela. Alguma noção de história da ciência, como a que tentei transmitir aqui, por superficial
que seja, oferece inúmeras oportunidades para que
se reconheça o quanto o progresso científico depende não só de cientistas que extrapolem métodos, mas também daqueles que têm a capacidade de articular os discursos extra científicos que permitem as próprias
formulações metodológicas. Newton, uma das mentes mais brilhantes que a
humanidade já conheceu, deixou a modesta
confissão: "Se enxerguei mais
longe, foi porque subi nos ombros de gigantes". Para além de uma demonstração de humildade, e do reconhecimento
da ciência como uma prática coletiva, a frase também
contém o sentido de que o progresso
só é possível a partir do conhecimento
do passado. A ciência como conhecemos hoje é a melhor que já existiu, mas não é a melhor possível. Já sentimos em muitas disciplinas
as limitações dos métodos existentes, e seria ingenuidade histórica não admitir que eventualmente
qualquer progresso será impossível dentro destas limitações.
Lá, no fim do método, os pequenos continuarão
batendo a cabeça contra a parede, enquanto os
que subirem nos ombros dos gigantes da história
enxergarão mais longe.