sexta-feira, 28 de março de 2014

Rascunhos de um pensamento político

Parte 1: A intuição libertária

Chamo de intuição libertária uma postura que, para mim, é o ponto de partida. Algo como uma "verdade evidente por si mesma", mas que terei de justificar se for para elaborar algum pensamento digno do nome, mesmo que um rascunho. A idéia de liberdade, como apresentada na famosa declaração de independência dos EUA, está associada à idéia de direito, de um direito inalienável. 

"Consideramos estas verdades como auto-evidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade". (Wikipédia)

A óbvia contradição, em um texto que visa à instituição de um Estado, é que todo Estado começa por uma alienação desse direito à liberdade. Então, o primeiro passo, seria determinar o grau dessa alienação, para imaginar um Estado que se institua como a obra de homens livres, conscientemente abrindo mão do mínimo necessário de suas liberdades para a manutenção da ordem. A formulação mais básica é de Mill: "Que o único propósito pelo qual um integrante de uma comunidade civilizada pode ser legitimamente coagido é para prevenir o dano a outros". (On Liberty, 1859)

Essa é a intuição libertária básica. Que cada membro de uma sociedade seja livre para agir segundo seus próprios interesses, para definir quais são seus próprios interesses, e para colher os frutos e as agruras de suas livres escolhas, com a prazerosa garantia da segurança provida pelo Estado, resumida na cláusula de que não impeça outros de fazer o mesmo. Implícito nessa formulação está a idéia de que o Estado é um mal necessário, ou, na melhor das hipóteses, um bem, perfeitamente bem-vindo, mas apenas enquanto realizado na medida certa. Nesses termos, poucas coisas seriam mais importantes para o bom funcionamento de uma sociedade, que a capacidade do povo para controlar o Estado, mantendo a eterna vigilância, que é o preço da liberdade (Thomas Jefferson).

Para mim, a principal crítica a esta intuição não ataca a idéia de liberdade, mas a de indivíduo. Também implícito na intuição libertária está a idéia de que há algum valor intrínseco ao indivíduo, que lhe dê direitos em oposição aos interesses coletivos. Porém, ao considerar que não há, nem nunca houve, algo que possa ser chamado de ser humano desprovido de uma cultura e de uma sociedade, pode-se argumentar que, talvez, a liberdade individual mereça menos crédito do que a intuição libertária lhe compete. Talvez a máxima expressão do ser humano se encontre em sua entrega ao bem comum, e não no ilusório (fetichista?) esforço de valorizar a si mesmo.

Novamente, para apontar alguma saída a esse embate, basta revelar as idéias implícitas. Na intuição libertária, como aqui exposta, e na crítica proposta, esta implícito o antagonismo, a polarização: para ser libertário é preciso valorizar o indivíduo em detrimento da sociedade, e, para que se possa valorizar a sociedade, é necessário diminuir o indivíduo. Depois das manifestações de agosto, fui bombardeado por sugestões de textos de ambas as estirpes. Os amigos de esquerda, com seus discursos de esquerda, sem muitas novidades. Mas os amigos de direita, que antes ficavam calados, ou resumiam-se aos comentários da forma: "que absurdo!", parece que começaram a tentar organizar as idéias, e eleger algum discurso que os representasse de forma mais elaborada. O discurso libertário foi um dos que mais ganhou força, ao menos na minha amostragem pessoal. Mas, mesmo quando muito bem conduzidos, provenientes de fontes eruditas e creditadas, tais discursos tendem à polarização. Tendem a opor-se ao Estado, como se o libertarianismo flertasse com a anarquia. Não chegam ao exagero de defender um libertarianismo brutalista, uma sociedade do egoísmo, mas perdem tempo atacando as instituições, a máquina do Estado, os mecanismos de proteção social. Uma coisa é defender um Estado mínimo e pouco intrusivo, outra é atacá-lo por princípio.

A única forma que eu encontro de justificar a intuição libertária, na forma de um pensamento coeso, é evitando essa polarização, e negando a visão do Estado como um mal necessário. Isso passa por reconhecer toda a premissa da crítica ao individualismo, negando apenas sua conclusão.

De fato, o indivíduo humano isolado, como um constructo teórico, é algo menos que humano. É impossível falar em individualismo em oposição ao Estado, na medida em que não há indivíduo humano sozinho. Nós somos definidos pela cultura, pelos símbolos compartilhados, pela linguagem, pela moral. Ao invés de antepor um ao outro, Estado e indivíduo, é  mais útil partir da premissa de que não há empreendimento mais nobre, e mais essencialmente humano, que a instituição de um Estado justo.

Montesquieu propôs que haveria três formas básicas de governo, cada uma regida por um princípio social: o despotismo, regido pelo princípio do terror; a monarquia, pelo princípio da honra, e a república, pelo princípio da virtude. Cada uma dessas afirmações pode ser elaborada de forma riquíssima, mas a última, talvez por falar mais diretamente às nossas sociedades liberais democráticas, é a que mais me interessa. Há um conceito, aí, tão esquecido. Um princípio básico a legitimar qualquer sociedade democrática, e que, talvez, por tão básico, deixemos de considerar. É que um governo do povo, para o povo, e pelo povo, não pode ser justo se o povo não for justo. Na república, a virtude da sociedade legitima a virtude de seu Estado.

Isso parece que abre uma caixa de Pandora, porque aí seria necessário discutir virtudes, moral, valores, mas nada disso cabe nesses rascunhos. Cabe dizer, com Kant, que ninguém é capaz de moral se não for livre. Que não há possibilidade de uma ação ser virtuosa, se ela não for, primariamente, tomada por um ser humano no pleno exercício de suas faculdades, como um ser livre e racional. A necessidade, imperativa, de ser livre do Estado, não se impõe em antagonismo ao mesmo, mas como a única forma de legitimá-lo.

Por isso não vejo o libertarianismo como um desejo pela ausência do Estado, mas como um desejo por um Estado que trate seus membros como adultos. Na verdade, o desejo por um Estado que tenha em todas as sua engrenagens uma única motivação, a sua única e real função: a de garantir a formação e manutenção de um povo livre, responsável, e desperto, capaz de garantir a formação e manutenção de um Estado justo.