Recentemente eu me meti a escrever dois textos sobre
educação, tentando dar forma a algumas reflexões que venho tendo como pai de
primeira viagem. Embora tenham sido, realmente, sobre educação, eles também
eram textos sobre um outro assunto, que ficou subjacente, e que é realmente o
tema que mais tem me interessado, tanto pessoal quanto profissionalmente: ambos
eram textos sobre ética. Mais especificamente, sobre uma forma de se pensar a
ética que tem sido chamada de ética da virtude.
No último texto, sobre palmadas, eu falei de duas formas de se julgar o valor
moral de uma ação. A forma utilitarista, ou consequencialista, vai julgar se a
palmada é boa ou não com base nas consequências que ela gera. E a forma
deontológica vai se preocupar com algum princípio moral, uma regra de conduta.
Por praticamente dois séculos a discussão moral foi polarizada por essas duas
vertentes, porque elas permitem argumentos bem objetivos. O utilitarismo chega
a quantificar matematicamente, fazer gráficos, que medem as consequências
positivas versus as negativas e com isso aprova ou não a legitimidade moral de
uma conduta.
Mas que outra opção temos, além de avaliar a moral por regras ou por
consequências? A ética da virtude irá propor uma terceira via, ao dizer que
devemos avaliar o caráter de uma ação pelo caráter do agente. Uma boa ação é
aquela praticada por um homem bom. Uma ação justa é aquela praticada por um
homem justo. Parece estranho? Parece um pouco. Mas vejamos o que isso significa
na prática.
Eu apanhei de meus pais. Eu e minhas irmãs, quando nos comportávamos mal,
éramos devidamente colocados de bruços sobre as pernas de minha mãe e
recebíamos sonoras chineladas na bunda. Éramos três, e nos momentos de maior
agitação ou confusão, também levávamos boas palmadas menos sistemáticas. Eu me
lembro que estava já na faculdade quando ouvi pela primeira vez uma discussão
mais formal sobre uma possível lei para abolir as palmadas e achei aquilo um
absurdo. Por que proibir? Eu apanhei minha infância toda e nunca senti que
aquilo tivesse sido um problema, nem remotamente. Pelo contrário, tive sempre
uma impressão tão boa de meus pais, de minha família e da minha infância, que a
idéia de que a forma como eu fui criado pudesse ser considerada ilegal me
pareceu uma afronta. Outras pessoas, porém, nunca apanharam de seus pais e
consideravam o ato alguma coisa de hediondo. E outras ainda, apanharam de seus
pais e sentiam-se traumatizadas por isso, ou ao menos prefeririam que tivessem
sido tratadas de outra maneira. Quando a discussão vai a público, e pretende-se
formular uma lei, ela passa a ser colocada de forma objetiva. Queremos um
parâmetro claro, científico, que diga o que é certo ou errado. Queremos avaliar
a ação por alguma regra clara, ou por consequências mensuráveis. Mas algumas
questões são propriamente questões morais, e deveriam ser colocadas em termos
de valores, não de fatos. Como é possível que eu tenha apanhado de meus pais e
me sinta tão bem educado por eles, enquanto outros se sentem tão mal por isso?
Como achar a regra clara ou a medida absoluta das consequências, que
compatibilize vivências tão diferentes?
Segundo a ética da virtude, uma boa educação é aquela levada a cabo por um pai
ou uma mãe que sejam bons educadores, ou seja, que tenham a virtude de saber
educar. Bater nos filhos pode, ou não, fazer parte de uma boa educação, mas
isso não depende de uma regra absoluta, nem de consequências mensuráveis.
Depende do caráter do educador. Bons educadores, pais virtuosos, não se
submetem a uma regra maior que eles mesmos, nem ficam avaliando consequências,
embora possam fazê-lo quando lhes parecer apropriado. Pais virtuosos o são em
todas as suas ações, pois essa virtude impregna-lhes o caráter. Eles se
interessam por educação, e emocionam-se ao educar seus filhos. Reconhecem essa
virtude em outras crianças e em outros pais, e esse reconhecimento é bom, é
alegre, une-os em torno de um mesmo ideal, mesmo que discordem em alguns
valores individuais. Prestam atenção em educação, em seus filhos, e em seus
valores. Vêem-se naturalmente interessados em reportagens, livros ou
comentários que ouçam a respeito do tema. Seus ânimos, suas disposições,
voltam-se para esses temas como uma pedra se volta para o chão. Percebem quando
agem bem, pois se sentem tomados de alegria, e não há lei, regra ou medida no
mundo que possa fazê-los se desviar daquilo que sentem, com todas as forças,
que é a ação em conformidade com a virtude, que é a boa educação.
Mas como saber? Como ser um bom educador? Bem, ninguém nasce virtuoso. Na forma
mais clássica de ética da virtude, que é basicamente a ética de Aristóteles,
existe o conceito, do grego, de "phronesis", uma espécie de sabedoria
prática, a capacidade de reconhecer em cada situação qual a maneira correta de
agir. Esta sabedoria se adquire, se desenvolve na prática, através da
experiência e da convivência com a sociedade. Pensar por esse molde da ética da
virtude não é uma espécie de garantia contra o erro. Se a boa educação é aquela
provida por um bom educador, poder-se-ia entender que qualquer coisa que este
fizer será sempre acertada. Não é assim. A idéia é que exista uma forma ideal
da boa educação, e o bom educador é aquele se pauta por ela. Ele pode errar.
Talvez a palmada não devesse fazer parte de uma boa educação, mas não é por
bater ou não que se define o caráter do bom educador. Talvez haja momentos em
que bater seja adequado, e momentos em que não, mas a angústia de saber distingui-los
não deveria ser resolvida por uma regra pré-definida, uma receita de bolo, ou
por qualquer critério que tire da jogada aquele que é o critério mais
importante, mais fundamental: a sabedoria e a disposição para a virtude do
educador.
A ética da virtude vem experimentando um ressurgimento nos últimos cinqüenta
anos, mais ou menos. Este ocorreu em grande parte como uma reação à forma cada
vez mais fria, rígida, objetiva e pretensamente científica que a filosofia
moral vinha colocando seus problemas. Essa reação vem ganhando força e
influência, mas ainda é relativamente recente. Muitas particularidades desse
pensamento ainda não foram suficientemente aprofundadas, e alguns de seus
problemas ainda não foram satisfatoriamente endereçados.
Após séculos relegadas
a segundo plano, temos dificuldade para encontrar um espaço para as virtudes em
nossa sensibilidade contemporânea. Devemos criar nossos filhos para serem
virtuosos, ou seja, segundo essa ótica, para terem uma disposição para agir bem
e uma sabedoria prática para nortear suas ações. Mas que virtudes devemos
ensinar? Honestidade? Lealdade? Temperança? Fraternidade? Coragem? São muitas
as virtudes clássicas, mas sabemos como elas entram e saem de moda, tornam-se
mais ou menos relevantes, e é difícil assumi-las como verdades atemporais. Por
exemplo, há cinquenta anos atrás um funcionário leal com décadas de empresa era
valorizado, enquanto hoje um jovem que passe dois anos em uma mesma empresa
começa a parecer um acomodado. Lealdade e experiência eram virtudes muito
importantes, mas hoje, agilidade e ambição são mais. No Texas, a coragem para
defender sua família de um assaltante com uma arma é uma virtude. No Brasil, é
uma idiotice. Aquilo que aprendemos como virtude e sabedoria prática muda
demais, com o tempo e a sociedade em questão, e foi esse exatamente o apelo que
levou o utilitarismo a se tornar tão influente, por propor uma forma objetiva
de distinguir certo e errado.
Ainda não há uma resposta exata para essas
questões. Não temos como saber quais virtudes devemos ensinar, quais valores
especificamente devemos sempre defender. Mas também não podemos nos deixar cair
em um relativismo total em que o bom é aquilo que a cada um lhe parece. A
palavra grega para virtude é "areté", que quer dizer, mais
precisamente, excelência. A questão que se põe, para a educação e para a ética
da virtude, é: o que constitui a excelência do ser humano? O que significa
viver de acordo com a virtude, ou seja, viver de forma a expressar ao máximo a
essência do homem e da humanidade? Pode ser que não conheçamos uma resposta
absoluta para essa questão, pode ser que ela não exista. Mas podemos sentir, em
nós, e em nossa disposição para a vida prática, algo que reconhecemos como bom.
E não há nada mais importante que possamos fazer por nossos filhos que ensinar
isso a eles. Torná-los tão capazes quanto nós, mesmo que sejamos ainda tão
incapazes, de perseguir a virtude.
Por isso eu disse no primeiro texto: para educar bem, eduque-se. Torne-se uma
pessoa melhor, mais sábia e mais virtuosa. Preocupe-se em desenvolver essa
virtude, essa disposição de ânimo, de inspirar-se pela educação. Você vai perceber
que educar é um processo contínuo e bilateral, pois você tem tanto a aprender
quanto seu filho, e ambos estão, essencialmente, aprendendo a mesma coisa. Nada
se compara à alegria de descobrir-se cada vez menos um professor, e cada vez
mais um companheiro de seu filho nessa aventura de se tornar um ser humano
melhor.